Alojamento não é o mesmo que habitação, tal como construção não é o mesmo que arquitectura. Quer ao alojamento quer à construção falta o que distingue a arquitectura, que é a memória e a dimensão poética. É por causa do que significam arquitectura e habitação que os arquitectos têm tanta dificuldade no relacionamento com os promotores imobiliários e o redutor pragmatismo mercantil.
A “habitação social” não tem a menor possibilidade de ser habitação. Consegue ser, quando muito, alojamento razoável, cumprindo mínimos de espaço e salubridade. Soluções normalizadas que tornam semelhantes e igualmente deprimentes vastas áreas de alojamento nas periferias das cidades, sejam capitais, sejam pequenas cidades ou vilas em expansão. São meros dormitórios, não-lugares informes e uniformes, sem história nem memória, para acomodar ciclos diários de não-existências.
A expressão “crise da habitação”, designando um problema social e político que afecta hoje não só Portugal mas quase toda a Europa, é um eufemismo para a falta de alojamento. Os políticos, a bem do rigor, deveriam falar em política do alojamento e não em política da habitação. Quando se dispõem a resolver este problema, os governos apenas almejam suprir a falta de alojamento, tendo sempre a preocupação de o remeter para nenhures, numa qualquer terra de ninguém, um não-lugar, longe do centro histórico e dos lugares — espaços e circunstâncias urbanas que têm aquela espessura feita de um acumular de memórias e vivências que se renovam e que se convencionou preservar.
Nas colmeias de apartamentos mínimos que brotam em arredores não se conjuga o verbo morar, pois só se mora numa casa. A casa é aonde queremos sempre regressar, tal como Ulisses, por muito que nos afastemos dela.
Gaston Bachelard, no seu livro A Poética do Espaço (Presses Universitaires de France, 1957), diz-nos que no oposto da casa natal trabalha a imagem da casa sonhada, e mesmo no entardecer da vida, com coragem invencível, continuamos a dizer: o que ainda não fizemos será feito — construiremos a casa, faremos o ninho. Essa casa sonhada pode ser uma simples quimera de proprietário, um concentrado de tudo o que é considerado cómodo, confortável, saudável, sólido ou mesmo desejável para os outros. Deve então contentar o orgulho e a razão, termos inconciliáveis.
A casa-ninho nunca é nova, mesmo que acabada de construir, pois é sempre a materialização e a morada do velho sonho mil vezes visitado. A casa-ninho é assim o lugar natural da função de habitar. Volta-se a ela, sonha-se voltar, como a ave volta ao ninho, como a ovelha volta ao aprisco. Os regressos acontecem de acordo com o grande ritmo da vida, ritmo que atravessa os anos, que luta através do sonho contra todas as ausências. Nos devaneios íntimos acerca do ninho e da casa repercute o sentimento de fidelidade.
Não há desejo de regresso ao tugúrio anónimo perdido na colmeia suburbana; é impossível ser-se fiel ao mero alojamento indistinto.
Escrevo segundo o anterior acordo ortográfico.
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