As estatísticas macabras propaladas diariamente procuram demonstrar que os velhos sucumbem todos à covid-19 quer sejam saudáveis e autónomos quer vegetem em lares. E a morbidez moralista dos noticiários instila na sociedade o impulso vigilante e a autocensura — os maiores de 70 anos têm de ser protegidos deles próprios e dos outros; devem ficar em casa; devem arranjar alguém que lhes deixe as compras no patamar; ver os netos, só a distância, da varanda para o passeio ou, muito mais aconselhável, em videochamada; e devem adiar qualquer consulta médica que não seja acerca da covid-19.
Devem, portanto, aguentar “confinados” que este desvario desinfectante passe. Confinado tem como primeira acepção se precisares de mim, não me incomodes.
O tifo fez três milhões de mortos, desde o final da Primeira Guerra até 1922. Mais ou menos ao mesmo tempo, a gripe espanhola matou outros vinte milhões. A tuberculose matou um bilião, entre 1850 e 1950. De 1896 até 1980, a varíola matou trezentos milhões. O sarampo dizimou seis milhões por ano, até 1963. Mais localizadas, há anualmente três milhões de mortes por paludismo. Em Portugal, a gripe mata todos os anos mais de três mil pessoas.
Os nossos maiores de 70 são sobreviventes e filhos de sobreviventes destas epidemias e das mil e uma vicissitudes da vida. Os nossos maiores de 70 não só dispensam lições de sobrevivência como as podem dar. O seu encolher de ombros e falta de paciência para esta pletora de tudólogos e especialistas em achismo, para tanta “higienização”, para tanta “noção” televisiva, deveria ser visto como sinal tranquilizador de quem já passou por muito mais do que isto e sobreviveu. Deveria ser visto como sinal de que temos a aprender com a sua experiência, em vez de os infantilizar e lhes censurar a urgência de aproveitar o dia.
Para os maiores de 70 é aqui e agora, amanhã logo se vê. Além de que a dignidade e os direitos cívicos não caducam depois dos 70. Quando esta epidemia passar, e antes da próxima, ficará a lembrança da figura triste dos que pensam que ser idoso é mania de que estão livres.
Henrique Barros, epidemiologista, usa a analogia com o VIH, lembrando que a solução não foi deixar de ter relações sexuais, mas passar a tê-las com preservativo. Viver é arriscado, devemos acautelar-nos, mas apenas para não deixar de, enquanto há vida, viver.
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