Da cidade que cuida à cidade que aprende
As Caldas da Rainha nasceram do cuidado e podem renascer pela inteligência. O gesto de D. Leonor – unir compaixão e ciência – fundou uma cultura onde curar era também compreender. Hoje, essa mesma matriz pode gerar uma nova síntese: uma cidade que transforma conhecimento em bem-estar e inovação em longevidade.
O futuro não se decide em betão, mas na capacidade de religar a economia local à saúde, à cultura, à coesão social, à tecnologia e ao conhecimento científico. É neste cruzamento que a tradição termal se encontra com a revolução digital – e onde a Universidade assume um papel central.
A presença da Escola Superior de Artes e Design (ESAD.CR) e da Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar (ESTM), ambas integradas no Politécnico de Leiria, confere às Caldas da Rainha e à região um dos polos académicos mais criativos e tecnicamente qualificados do país. É aqui que o design, a saúde, a tecnologia e o mar se encontram, criando um terreno fértil para a experiência interdisciplinar e para o nascimento de novas ideias com impacto social e económico.
Caldas da Rainha é, simultaneamente, berço histórico do termalismo e polo de desenvolvimento de um dos dezassete unicórnios portugueses: a Tekever, empresa de aeronáutica e inteligência artificial que cria sistemas autónomos aplicados a missões civis e humanitárias. A mesma cidade que, no século XV, inovou ao criar o primeiro hospital termal do mundo, hoje projecta tecnologia que vigia oceanos e salva vidas.
Esta convergência – entre património humano, conhecimento académico e futuro tecnológico – é a essência do Oeste Azul: um território capaz de unir ciência e sensibilidade, inovação e cuidado, tradição e inteligência territorial. Daqui nasce a visão estruturante de uma Universidade da Água e da Longevidade, que una o saber médico, científico, ambiental e social – um espaço de investigação aplicada à vida, onde o conhecimento serve para cuidar e o cuidar se transforma em conhecimento.
O Mercado de Santana, a Praça da Fruta, a Praça do Peixe, a Expoeste e o CCC – Centro Cultural e de Congressos – formam um arco simbólico e funcional: um ecossistema urbano que une tradição e modernidade. Servidos pela Mata e pelo Parque, estes espaços verdes constituem o pulmão e o coração de uma cidade que aprende, produz e partilha – um território que gera inteligência territorial aplicada, onde a vida quotidiana se transforma em valor colectivo, rodeado por montanhas e mar.
Do desperdício ao valor
A urgência da saúde no Oeste é consciência e visão. Enquanto se discute o novo hospital, o verdadeiro desafio é criar um território saudável e longevo, capaz de unir saúde, ambiente e coesão social. Portugal investe cada vez mais, mas o Oeste nem sempre vive melhor.
Os números confirmam a urgência: entre 2012 e 2022, a despesa do SNS cresceu 72 % sem aumento proporcional de actividade. Em 2024, o SNS gastou 15 553 milhões de euros – e as estimativas convergentes da OCDE, OMS e Tribunal de Contas indicam que entre 10 % e 15 % desta despesa se perde anualmente em ineficiência, o que corresponde a 1 555 a 2 333 milhões de euros por ano. Gastamos mais para produzir o mesmo. Não falta dinheiro: falta inteligência na sua utilização.
É precisamente neste ponto que o Relatório RADIS (CNS, 2025) confirma aquilo que temos vindo a defender: aumentar o financiamento não resolve — é o próprio sistema que tem de ser redesenhado. Isto implica abandonar reformas simbólicas e construir uma arquitectura operacional capaz de transformar recursos em valor real.
Significa financiar trajectos, não episódios; orientar o investimento para ganhos mensuráveis em qualidade, continuidade e redução de sofrimento evitável. Exige, sobretudo, a criação de uma verdadeira infraestrutura nacional de dados relacionais – e não um mosaico de bases isoladas – para que qualquer ponto da rede aceda ao mesmo mapa de risco, à mesma história clínica e aos mesmos indicadores de trajecto, garantindo decisões seguras, consistentes e previsíveis.
Impõe ainda uma estratégia de literacia em saúde que permita aos cidadãos navegar o sistema, distinguir urgência de conveniência e assumir corresponsabilidade pelas suas escolhas, reduzindo a pressão evitável que hoje asfixia o SNS. E demanda uma governação que abandone a lógica institucional isolada e adopte uma lógica de ecossistema: redes territoriais com liderança partilhada, accountability transversal e aprendizagem contínua. Só assim o SNS deixará de ser um arquipélago e se tornará, finalmente, um continente funcional.
“Luto pelo Hospital”
A solução não está em construir mais betão, mas em estratégia territorial: aproximar diagnóstico, prevenção e literacia ao cidadão. Equipar Centros de Saúde com radiologia, ecografia, análises clínicas e electrocardiografia não é luxo – é inteligência. Cada exame feito em proximidade evita uma urgência, reduz sofrimento e aumenta eficiência. Os países que lideram longevidade não constroem mais hospitais: constroem sistemas que chegam às pessoas.
Se o desperdício fosse convertido em valor, os efeitos seriam imediatos: valorização profissional, reforço de equipas, modernização contínua de infra-estruturas. O desperdício não é abstracção – é custo de oportunidade, atraso e fragilidade institucional. A pergunta certa não é podem os Centros de Saúde ter exames de primeira linha; é porque razão, no século XXI, ainda não têm?
O Oeste não precisa de mais betão – precisa de mais inteligência.
Um ecossistema de saúde e longevidade
O futuro da saúde no Oeste depende da capacidade de articular o público e o privado sem dogmas. O Hospital do Montepio, a CUF de Torres Vedras, a Luz Saúde — que prepara a sua entrada na região – e as ULS Oeste podem constituir o primeiro cluster nacional de longevidade, prevenção e bem-estar, articulando-se com as Termas das Caldas da Rainha, símbolo histórico da prevenção e da regeneração.
Como desenvolvi em “Gémeos Digitais: Sustentabilidade e Eficiência na Gestão Hospitalar” (Revista Gestão Hospitalar – APAH, nº 37), o caminho passa por transformar a estrutura hospitalar numa plataforma clínica, digital e logística capaz de partilhar dados, coordenar profissionais e optimizar recursos em tempo real, orientada por ética pública de valor. A saúde do futuro nasce de ecossistemas cooperativos, não de estruturas isoladas. É assim que se converte fragmentação em inteligência e despesa em investimento social.
Inteligência territorial aplicada
Modernizar não é construir paredes: é construir competências. Hospital de dia, cirurgia de curta duração, cuidados domiciliários e telemonitorização são práticas comprovadas – menos infecções, custos 25 % a 68 % inferiores, maior conforto e recuperação mais rápida. Mas nenhuma tecnologia substitui liderança ética e planeamento inteligente. (Fontes: OCDE Health at a Glance 2023; DGS – Programa Nacional de Cirurgia de Ambulatório 2022; WHO – Global Report on Patient Safety 2021; Porter & Teisberg 2006; Berwick 2011).
Como escrevi em “Do Near Miss ao Conhecimento: Cultura de Aprendizagem nas Organizações de Saúde” (Revista Gestão Hospitalar – APAH, nº 42), os sistemas mais maduros transformam o erro em conhecimento e o conhecimento em melhoria. A verdadeira revolução silenciosa consiste em aprender com o que correu mal para impedir que se repita – e aplicar essa lógica à literacia em saúde exige três pilares essenciais:
- Promover estilos de vida saudáveis;
- Capacitar os cidadãos para utilizarem o sistema de forma responsável;
- Acompanhar doentes crónicos com equipas de proximidade.
Cada euro investido em prevenção poupa muitos em internamentos. A sustentabilidade começa quando o conhecimento substitui a improvisação. Mas a prevenção não dá votos – nem fotografias de inauguração.
Enquanto exames básicos forem tratados como luxo hospitalar – e não como plataforma essencial de triagem –, continuaremos a pagar milhões para tratar no hospital aquilo que poderia ter sido resolvido no território: mais cedo, melhor e com menos sofrimento humano.
O futuro do Oeste: Mérito, ética e decisão
O futuro do Oeste não depende do que se constrói – depende do que se decide. Competência não nasce de decretos: prova-se em prática, resultados e responsabilidade. Mais hospitais não resolvem o essencial. O futuro exige a transição de uma estrutura orgânica para uma plataforma clínica, digital e logística capaz de partilhar dados, coordenar profissionais, optimizar recursos e decidir com base em ética e valor.
O maior problema da saúde em Portugal não é a falta de recursos – é a falta de inteligência organizacional e de concorrência qualificada. Só evoluiremos quando adoptarmos bases de dados relacionais, capazes de partilhar informação, coordenar equipas e optimizar recursos em tempo real, guiadas por ética pública de valor e não por conveniência administrativa.
O comodismo do “que avancem os outros – se tiverem direito, eu também terei” mina a motivação, o mérito e o progresso. O emprego vitalício imune ao desempenho é um incentivo perverso: quando a progressão assenta apenas na antiguidade e na nota de uma entrevista, o valor deixa de ser critério e o desempenho deixa de contar. Nenhuma organização – pública ou privada – sobrevive assim. Sem incentivos ligados ao mérito, a excelência definha; com o mérito morto, a organização estagna.
No sector público, o culto do “número mecanográfico” tornou-se o símbolo dessa estagnação (como analisei na APAH n.º 41): um sistema onde a lealdade burocrática pesa mais do que o talento e a rotina ocupa o lugar da inovação.
Quando a rotina passa a valer mais do que a competência, o desfecho é sempre o mesmo: a ambição esvazia-se, a coragem de pensar desaparece e a capacidade de criar valor evapora-se. As organizações deixam de aprender; os melhores perdem força; os piores acomodam-se; e o serviço público transforma-se num ritual administrativo sem inteligência.
Este é o paradoxo que poucos têm coragem de enfrentar: não há serviço público moderno sem cultura de mérito. E não há cultura de mérito onde o silêncio vale mais do que a crítica e a antiguidade mais do que a qualificação.
Resta, por isso, a pergunta que define o futuro: como pode um país avançar se insiste em promover quem nunca avançou?
Indicadores de uma Zona Azul contemporânea
Transformar o Oeste numa Zona Azul implica medir o progresso em valor humano. O desenvolvimento sustentável traduz-se em cinco dimensões:
- Expectativa de vida saudável – viver mais e melhor;
- Eficiência energética e ambiental – converter recursos em valor sustentável;
- Literacia digital, ecológica e em saúde – capacitar para decisões inteligentes;
- Participação cívica – reforçar coesão e corresponsabilidade;
- Satisfação comunitária – medir bem-estar e pertença.
Metas 2026–2029:
- Reduzir 15 % do consumo energético hospitalar (kWh/m²);
- Atingir 50 % de cirurgias elegíveis em ambulatório;
- Telemonitorizar 20 % dos doentes crónicos;
- Garantir mobilidade sustentável para 10 % dos profissionais;
- Integrar indicadores de satisfação e literacia em todos os relatórios da ULS Oeste.
Estas metas não são tecnocráticas – são compromissos de civilização.
O Oeste no mapa da longevidade
As 5 Zonas Azuis do mundo – Sardenha, Ikaria, Okinawa, Nicoya e Loma Linda revelam que a longevidade é consequência de cultura, não de acaso biológico – alimentação simples, convívio, propósito e equilíbrio são denominadores comuns. O Oeste português tem clima, dieta mediterrânica e espírito comunitário: falta-lhe transformar esta vocação em política e prática quotidiana.
Menos dispersão urbana, mais coesão; menos medicalização, mais prevenção; menos dependência, mais autonomia. Quando o Oeste aprender a medir o progresso pelo tempo vivido com sentido, tornar-se-á o sexto caso confirmado de Zona Azul no mundo.
Conclusão – O futuro que se constrói
Durante décadas, o Oeste foi tratado como problema administrativo. Mas a crise abriu espaço para uma mudança profunda: transformar despesa em investimento, fragmentação em inteligência e inércia em visão. A região possui tudo o que importa: capital humano, património natural, memória cultural e o legado ético de uma cidade fundada para cuidar.
A Cidade que Nasceu para Cuidar revelou a origem. Entre o Custo Político e o Preço do Desperdício identificou o bloqueio. Oeste Azul propõe o caminho.
Uma Zona Azul não se anuncia – constrói-se. No gesto diário, no acto repetido, na decisão consistente. Até que o futuro deixe de ser projecto e passe a ser a vida que já estamos a viver.
José Filipe Soares
(MSc. Engenharia e Tecnologias da Saúde)
O texto segue a ortografia culta da Língua Portuguesa, por respeito à sua matriz histórica e etimológica










