Durante séculos, a doença foi atribuída ao “ar mau”. A teoria dos miasmas dominou o pensamento: acreditava-se que as infecções vinham de ares pestilentos, sobretudo em espaços fechados, húmidos e mal cheirosos. Intuitivamente, percebia-se que salas cheias de gente faziam mais gente adoecer. Mas o ar era apenas um culpado difuso, sem distinção entre poluição exterior e ar interior degradado pela ocupação humana. Era tudo “ar mau”.
No século XIX, Florence Nightingale dá o primeiro passo estruturado na direcção certa. Nos hospitais de campanha e nas enfermarias que desenhou, defendia um princípio simples e revolucionário: manter o ar que o doente respira “tão puro quanto o ar exterior, sem o arrefecer”. As enfermarias compridas, com janelas opostas, pé-direito alto e ventilação cruzada, reduziram infecções e mortalidade muito antes de se falar em vírus ou aerossóis. Na prática, Nightingale transformou o ar interior no primeiro “medicamento arquitectónico” contra a infecção hospitalar.
Depois, a teoria microbiana de Pasteur e Koch muda o foco: passamos a saber que bactérias e vírus são agentes específicos das doenças infecciosas. Reconhece-se a importância do ar, mas no início do século XX prevalece a ideia de que a transmissão é sobretudo por contacto próximo e gotículas pesadas. Durante décadas, a ventilação e a qualidade do ar interior são empurradas para segundo plano na saúde pública oficial, apesar da intuição clínica de Nightingale e das advertências de alguns engenheiros sanitários.
É nos anos 1930–1950 que William F. Wells dá o salto conceptual decisivo. Mostra que as gotículas expelidas ao tossir ou respirar evaporam e se tornam minúsculos “núcleos de gotícula”, capazes de permanecer suspensos no ar durante longos períodos e atravessar salas inteiras. Liga estes núcleos à transmissão de tuberculose e outras infecções respiratórias em espaços fechados e, com o modelo Wells–Riley, quantifica o risco em função da ventilação, do tempo de exposição e do número de pessoas infecciosas. Nasce aqui, em termos formais, a ideia de que a quantidade de ar limpo por pessoa e por hora é um determinante directo da probabilidade de infecção num espaço fechado.
As décadas seguintes consolidam a evidência. Experiências com cobaias expostas apenas ao ar extraído de enfermarias de tuberculose mostram que os animais adoecem sem qualquer contacto directo com doentes humanos. Estudos em escolas e hospitais demonstram que baixas taxas de ventilação estão associadas a surtos de sarampo e outras doenças altamente contagiosas. A mensagem científica é clara: ventilação insuficiente significa risco acrescido de infecção em ambientes fechados.
Em 1976, o surto de Doença dos Legionários no hotel Bellevue-Stratford torna o problema visível para o mundo inteiro. Uma bactéria, a Legionella pneumophila, multiplica-se na água morna das torres de arrefecimento do sistema de climatização e é disseminada pelo ar do edifício sob a forma de aerossóis. Hospitais, hotéis, lares e grandes escritórios passam a ser vistos como potenciais amplificadores de doença quando o ar não é pensado, medido e cuidado.
Nos anos 1980 – 2000 fala-se cada vez mais de “síndrome do edifício doente”. Edifícios energeticamente “apertados”, com pouca renovação de ar, associam-se a irritação respiratória, dores de cabeça e maior susceptibilidade a infecções. Em resposta, normas internacionais de ventilação, como as da ASHRAE e de entidades europeias, passam a definir caudais mínimos de ar novo por pessoa precisamente para reduzir risco de doença e desconforto.
Com a epidemia de SARS em 2003, no complexo Amoy Gardens em Hong Kong, percebe-se de forma brutal como os fluxos de ar interior, as falhas na ventilação e nos sistemas de esgotos podem propagar um vírus muito para além do contacto directo. Em 2009, a Organização Mundial de Saúde publica orientações sobre ventilação natural em unidades de saúde, afirmando de forma explícita que a ventilação adequada reduz a transmissão de infecções. Muito antes da COVID-19, já havia um reconhecimento formal de que a qualidade do ar interior em hospitais e centros de saúde é um factor de controlo de infecção – não um detalhe técnico.
Com a pandemia de Covid-19, o tema regressa em força. A princípio insistiu-se nas gotículas pesadas e nas superfícies; mas a evidência acumulada – histórica, experimental e epidemiológica – obrigou instituições como a OMS e as autoridades nacionais a reconhecer a transmissão aérea e a colocar a ventilação, a filtragem e a monitorização (por exemplo, através de CO₂) no centro da prevenção. Hoje, a ciência é inequívoca: sem medir e assegurar boa qualidade do ar interior, os espaços fechados transformam-se em amplificadores de infecções respiratórias.
É aqui que o presente português se cruza com o Projecto Oeste Azul e com a insistência neste tema como eixo central da liderança da Cidade que Nasceu para Cuidar, rumo à criação da primeira Zona Azul do continente europeu.
Sempre que a ministra da Saúde fala da gripe ou da Covid-19, a receita é previsível – e correcta: vacinar os grupos prioritários, recomendar máscara em espaços fechados, accionar planos de contingência para o SNS. O problema não está no que se diz. Está no que se omite. Quase nada se fala do ar que se respira em hospitais, centros de saúde e lares.
Ao mesmo tempo, a ciência internacional – e as próprias orientações da Direcção-Geral da Saúde – reconhecem que espaços interiores mal ventilados aumentam o risco de transmissão de vírus respiratórios, da gripe à Covid-19. Ou seja: o Estado sabe que o ar conta, mas continua a tratá-lo como nota de rodapé técnica, não como pilar da prevenção.
Se o Ministério não quer liderar por aqui, as Caldas podem querer. Se Lisboa hesita, o Oeste pode liderar.
É precisamente deste desfasamento entre o que a evidência já demonstra e o que a política ainda não assume que nasce o projecto “Caldas da Rainha Nasceu para Cuidar” e a ambição do Oeste Azul: preparar a cidade e a região para liderar a criação da primeira Zona Azul da Europa continental. Um território onde se vive mais tempo e melhor porque se cuida do que realmente faz diferença – a começar pelo ar que se respira em cada sala de espera, cada enfermaria, cada lar, medido e tornado visível por uma plataforma como a Caldas Azul Live.
Não é futurismo. É a consequência lógica de mais de um século de ciência sobre o ar interior. A verdadeira pergunta já não é se o ar conta.
É: Quem quer assumir a responsabilidade de o medir e cuidar – e quem prefere continuar a fingir que não existe?
José Filipe Soares
MSc Engenharia e Tecnologias da Saúde · MBA em Gestão
Nota do autor: o texto segue a ortografia culta da Língua Portuguesa, por respeito à sua matriz histórica e etimológica. A evolução da língua não exige o apagamento das raízes.









