No passado dia 11 de Novembro, realizou-se nas Caldas da Rainha a tão anunciada reunião de arranque do projecto Smart Healthy Region, juntou à mesma mesa representantes da Comunidade Intermunicipal do Oeste (OesteCIM), da nova Unidade Local de Saúde do Oeste, da NOVA IMS – Information Management School, da Escola Nacional de Saúde Pública e dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. A notícia oficial tratou o encontro como “um passo decisivo” para transformar os cuidados de saúde na região, evocando uma “visão conjunta” e o compromisso com uma plataforma de inteligência territorial em saúde. No papel, tudo parece alinhado com o futuro – quem não aplaudiria uma colaboração interinstitucional para modernizar a saúde regional?
Mas, ao levantar o véu da retórica, a dúvida instala-se: qual foi exactamente o salto inteligente que esta reunião produziu? Onde está o génio que justifica o “smart” do título?
A mensagem foi a de sempre: trabalhar juntos, inovar, partilhar dados… fórmulas tão repetidas que já fazem parte do arredondamento automático dos comunicados públicos. Nenhuma medida concreta, nenhum prazo e nenhum responsável identificado – apenas a confirmação do óbvio que já se encontrava em relatórios oficiais há anos.
Enquanto isso, no Oeste real – aquele onde a saúde não cabe em PowerPoints – há doentes em espera, há urgências congestionadas e há profissionais que não podem esperar por mais um projecto que se limita a enfeitar a modernidade. O encontro foi, até agora, mais plataforma de promessas do que plataforma tecnológica. No fim, fica a pergunta muda mas inevitável: se o futuro começou… quando é que começa a mudança?
Visões partilhadas e plataformas: promessa ou chavão?
Um dos pontos centrais da reunião foi a promessa de uma Plataforma Analítica Integrada para apoiar decisões baseadas em evidência e melhorar a saúde da população. A ideia, no papel, é irresistível – quem recusaria a ambição de uma região verdadeiramente “inteligente” em saúde?
Mas há um detalhe que a propaganda não resolve: a inteligência não se decreta, demonstra-se.
Em 2023, a própria OesteCIM, em parceria com a NOVA IMS, já tinha apresentou a plataforma Smart Region com o mesmo enredo – big data, inteligência artificial, governação moderna, inovação disruptiva. Um trailer entusiasmante sem nenhuma melhoria mensurável em tempos de resposta ou acessibilidade. Será que a segunda vem fazer diferente – ou apenas repetir a mesma narrativa com um nome mais clínico? Aqui está o risco: quando a tecnologia chega antes do pensamento, as plataformas transformam-se em montras digitais onde nada acontece atrás do vidro.
Sem uma estratégia política clara que defina prioridades, indicadores e resultados verificáveis, qualquer plataforma morre antes de nascer. Tecnologia não substitui clareza de propósito: se não soubermos que perguntas fazer aos dados, nenhuma “inteligência territorial” nos dará boas respostas. E quando uma região precisa de soluções concretas, dashboards vazios não são progresso: são apenas um eco iluminado da ausência de inteligência aplicada.
Plataformas não fazem política pública – Pessoas fazem
No Smart Healthy Region repete-se uma fórmula já demasiado familiar: proclama-se “transformação digital”, exibe-se uma plataforma promissora e adia-se tudo o que realmente importa. Fala-se em “visão conjunta” – mas visão de quê? Sem prioridades claras, metas concretas e responsáveis identificados, o que se chama visão não passa de vapor tecnológico com boa apresentação gráfica.
Porque plataformas, por si, não melhoram cuidados. No máximo, iluminam dashboards.
Sobem ao palco conceitos sedutores – inteligência territorial, evidência, transição digital – mas sem qualificação dos profissionais, sem infra-estrutura sólida e sem governação transparente dos dados, continuamos na mesma peça: grandes palavras em cenário vazio.
Então surgem as perguntas que ninguém quer ver escritas – muito menos respondidas:
- Quem governa a plataforma?
- Quem decide o que é prioridade?
- Quem controla o acesso aos dados – e com que critérios?
Inovação não é um PowerPoint com acrónimos. É ligar conhecimento, território e decisão – onde a vida acontece. Enquanto a mudança for anunciada sem ser vista, permanece a pergunta inevitável: se isto é smart, então onde está a esperteza?
Sem compromissos nem participação local
Mais relevante do que constatar o que foi dito é observar quem ficou de fora. Neste arranque solene, não se sentaram à mesa os autarcas que conhecem o terreno; nem os médicos de família que lidam com as dificuldades sem filtros; nem os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica que mantêm o sistema vivo todos os dias; nem os enfermeiros que seguram o acesso quando o resto falha; nem as associações que lidam com a vulnerabilidade que os relatórios não medem; nem – sobretudo – os cidadãos, que são o princípio e o fim de qualquer política pública de saúde.
A saúde não se redesenha em redacções de comunicados. Uma reunião que nasce sem território nasce órfã da realidade. A promessa de uma “visão conjunta” desfaz-se quando se apaga quem vê: os profissionais que enfrentam os problemas e os utentes que os sentem. Fala-se em evidência, mas ignora-se a primeira fonte da evidência: a vida concreta das pessoas – aquela que não cabe numa fotografia institucional nem numa transição de slide.
Este é o paradoxo do smart: quanto mais se fala em inteligência, mais falta sabedoria básica – a de incluir quem faz o sistema existir.
Literacia em Saúde – dar poder às pessoas para agir sobre os dados
O ponto de fricção essencial entre o Smart Healthy Region e o que defendo para o Oeste Azul está precisamente aqui: nas verdadeiras Zonas Azuis do mundo, a inovação não desce por decreto – nasce das comunidades. Quanto maior a literacia em saúde, quanto mais os cidadãos participam nas decisões e deixam de ser figurantes no seu próprio sistema, melhores são os resultados e maior é a longevidade com qualidade. Não basta partilhar dados – é preciso dar poder para agir sobre eles.
Esta exclusão não é um lapso de comunicação – é uma falha estrutural de governação. A experiência internacional é clara: plataformas tecnológicas só transformam cuidados quando simplicidade, participação e transparência fazem parte do seu ADN. Quando isso não acontece, a tecnologia torna-se uma torre de marfim digital – brilhante por fora, inútil por dentro – alheia às urgências da vida real.
E no Oeste, a vida real não espera: quem adoece encontra urgências cheias, profissionais em falta e um sistema que não se entende – porque a coordenação falha e a informação não acompanha o doente.
A equação é dolorosamente simples: Urgências cheias = Cuidados Primários vazios de capacidade.
A própria liderança regional reconhece esta falha, ao exigir respostas urgentes para os cuidados primários. Se o sistema não consegue assegurar o acesso mais básico, qualquer promessa de “inteligência territorial” transforma-se num paradoxo cruel: tecnologia a mascarar a ausência de soluções reais. Porque um território só é smart quando as pessoas o sentem na pele – não quando apenas o leem no comunicado.
A equação de quem quer futuro: (Tecnologia + Governança com visão + Comunidade activa) = Inteligência Territorial
Quando um destes falha, o que sobra não é progresso – é marketing. Territórios inteligentes são aqueles que devolvem tempo, saúde e oportunidades às pessoas. Se não se sente na pele, não é smart – é só caro.
Centros de Saúde – parte do problema ou da solução?
Enquanto os Centros de Saúde continuarem sem diagnóstico básico – análises rápidas, imagiologia elementar, unidades de observação – e sem interoperabilidade que permita decisões informadas em qualquer ponto do percurso do utente, as urgências permanecerão como a única porta sempre aberta. Culpabilizar a procura “inapropriada” é ignorar o essencial: quando não existem alternativas funcionais, a urgência não é abuso – é a única escolha possível.
A verdadeira transformação começa onde os cuidados nascem: perto das pessoas e com informação que realmente circula. Os relatórios oficiais são claros: fragmentação, redundâncias e incapacidade de aprendizagem organizacional continuam a bloquear o sistema. O problema não está só na falta de tecnologia – está na falta de cultura de integração, literacia colectiva e responsabilidade institucional.
A crise nos cuidados primários é estrutural: em Maio de 2025 havia 1 644 809 portugueses sem médico de família – o valor mais elevado do ano. Embora faltem dados públicos específicos para o Oeste, os sinais são visíveis: atrasos, listas de espera e urgências sob pressão contínua sugerem uma realidade tão grave quanto a média nacional – ou pior.
E, perante esta urgência real, o arranque do Smart Healthy Region não apresentou resultados esperados, prazos a cumprir ou responsáveis identificados. Anuncia-se modernidade – mas não se explica o caminho.
O Ritual Decorativo do “cone de Natal”: brilha… mas não ilumina
Sem metas públicas, prazos definidos ou responsáveis identificados, o slogan “Cidade Criativa” transforma-se em ritual decorativo: brilha nas fotografias, mas não ilumina soluções. O Oeste precisa de mudança real na vida das pessoas.
O que hoje é apenas adereço podia ser infra-estrutura útil 365 dias por ano: monitorizar a qualidade do ar, apoiar decisões clínicas e urbanas com dados em tempo real e reforçar a literacia em saúde. E até manter a dimensão festiva – com custos muito inferiores ao “cone de Natal”. Como defendo em “De Activo Improdutivo a Infra-Estrutura de Valor Público”, publicado no Jornal das Caldas.
Em vez disso, insiste-se na mesma parolice anual: um cone gigante, caro e inútil, que durante um mês tenta ser postal dos anos 90 – e desaparece passado o Natal, deixando apenas a factura para os contribuintes. Enquanto cidades inteligentes investem em sensores ambientais, micro-redes de energia e plataformas que funcionam 365 dias por ano com retorno económico, nas Caldas prospera a estética do efémero: um espectáculo que ilumina tudo – excepto a inteligência.
É o triunfo do espectáculo sobre a solução. Da aparência sobre a responsabilidade.
E a pergunta impõe-se: quantos investimentos estratégicos foram apagados… para que este cone pudesse brilhar?
Da retórica à realidade: o que falta para mudar
A discrepância entre o discurso institucional e a acção concreta ficou exposta: há um consórcio prestigiado, financiamento do PRR e promessas de futuro – mas falta o que distingue regiões que avançam daquelas que apenas anunciam progresso: liderança com coragem, planeamento rigoroso e participação real de quem vive os problemas.
O que transforma territórios não são dashboards luminosos. É a capacidade de converter dados em decisões que resolvem problemas: melhorar acessos, encurtar listas de espera e coordenar cuidados. Até agora, não há responsáveis identificados, nem prazos para resultados visíveis na vida das pessoas.
Nas verdadeiras Zonas Azuis – e no que defendo para o Oeste Azul – a mudança nasce da união entre inteligência digital e inteligência comunitária: tecnologia ao serviço da saúde real, e não o contrário.
Resta saber se o Smart Healthy Region será motor de transformação ou apenas mais um projecto que muda a forma para deixar o fundo igual. O futuro da saúde no Oeste decide-se aqui: com metas públicas, interoperabilidade efectiva e escrutínio cidadão. Sem isso, a modernidade não passa de marketing político.
Uma Zona Azul não se constrói com esperteza – constrói-se com inteligência.
Sem metas não há falhas – e sem falhas não há responsáveis. É assim que o imobilismo se disfarça de inovação, enquanto se confunde anúncio com avanço e comunicação com progresso. Se a tecnologia não melhora a vida das pessoas, não é modernidade: é distração.
Nas verdadeiras Zonas Azuis – como a que defendo para o Oeste – a mudança nasce da convergência entre inteligência digital e inteligência comunitária: tecnologia ao serviço da saúde real, não o contrário. O futuro do Oeste não precisa de ser “smart” – precisa de ser inteligente. O “smart” que se exibe nas luzes de um cone digno dos anos 90 ilumina o acessório… enquanto os problemas essenciais permanecem às escuras.
Inteligência é outra coisa: é ligar conhecimento à decisão certa, com ética, eficácia e impacto. Territórios verdadeiramente inteligentes reduzem desigualdades, aproximam cuidados e prolongam a vida com qualidade. O resto são slogans.
O futuro constrói-se com inteligência – não com esperteza. Porque o futuro das Caldas não se ilumina: constrói-se. E só quando se mede, acompanha e traduz em resultados é que se sabe o que realmente faz falta construir.
Nota do autor: o texto segue a ortografia culta da Língua Portuguesa, por respeito à sua matriz histórica e etimológica. A evolução da língua não exige o apagamento das raízes.
Fontes Consultadas: Comunicado oficial SPMS; Opinião JN – António Covas; Jornal das Caldas – José F. Soares.
Por José Filipe Soares
MSc Engenharia e Tecnologias da Saúde · MBA em Gestão










