JORNAL DAS CALDAS – Onde é que nasceu? Como foi a sua infância?
João Serrenho – Nasci numa aldeia da freguesia de Santa Catarina, no concelho de Caldas da Rainha. A minha infância foi a de um menino normal de aldeia. Sou filho de pais que trabalhavam a terra e dela viviam, e cresci nesse ambiente simples e rural. Eu e os meus irmãos vivemos lá até aos 10 anos. Depois fomos estudar e, aos 12, mudámo-nos para a cidade das Caldas.
Tive uma infância feliz, com a liberdade possível para uma criança da aldeia naquela época. Tenho dois irmãos mais velhos, o Luís e a Conceição Serrenho, que infelizmente já nos deixou há pouco tempo. Sempre fomos muito unidos, com as birras normais de qualquer criança.
Naquele tempo vivíamos de forma muito mais natural, sem equipamentos digitais. Na nossa casa nem televisão havia ainda durante a nossa infância. Era uma vida de verdadeira liberdade, dentro do que significava ser criança numa aldeia.
J.C. – Fale um pouco da sua família. Tem filhos? Quando casou?
L.S. – Casei com a Anabela de Oliveira Serrenho, uma colega que conheci na Escola Industrial e Comercial das Caldas da Rainha, hoje Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro. Conhecemo-nos muito jovens, por volta dos 15 anos, e acabámos por casar depois de eu regressar da tropa, aos 22 anos. A Anabela tinha então 20.
Temos a felicidade de ser pais de cinco filhos e avós de cinco netos. A nossa vida familiar é, por isso, muito preenchida. Sempre assumimos a responsabilidade de os educar, de os orientar e de lhes transmitir princípios e valores que consideramos fundamentais para a sociedade. Acreditamos que, até ao momento, essa missão tem sido bem-sucedida.
J.C. – Um marco importante na sua vida?
J.S. – O grande marco da minha vida foi a decisão da minha mãe de nos permitir estudar fora da aldeia de Santa Catarina num tempo muito diferente do atual, em que hoje a freguesia tem uma excelente escola. Costumo até dizer que, se essa escola existisse na nossa infância, a nossa vida teria sido completamente diferente.
Na altura, vínhamos diariamente de camioneta, mas mais tarde os nossos pais alugaram-nos uma casa nas Caldas. Tínhamos uma senhora que nos preparava as refeições e, ainda muito jovens, vivíamos os três praticamente de forma independente para podermos estudar.
Frequentei a antiga Escola Industrial e Comercial das Caldas da Rainha, onde completei o curso Geral de Comércio, depois a equivalência ao 12.º ano e, já aos 55 anos, a licenciatura em Ciências da Comunicação e Marketing no Instituto Piaget.
J.C. – A Pitau celebra 50 anos. Quando olha para trás, como recorda o início desta aventura?
J.S. – A Pitau nasceu em 1975 como uma pequena charcutaria de bairro, na Rua Sebastião de Lima, criada por mim e pelos meus irmãos, Luís e Conceição, numa altura em que precisávamos de criar o nosso próprio emprego. A minha irmã tinha regressado de Moçambique com dois filhos, eu e o Luís Serrenho ainda estávamos no serviço militar, e começámos a pensar num negócio que nos desse futuro.
Desde o início quisemos oferecer algo diferente. Trouxemos para as Caldas o pão tradicional que as pessoas iam buscar às Gaeiras. Os frangos tinham qualidade superior, criados de forma diferenciada pelos pais do meu cunhado. Os enchidos e queijos vinham diretamente de Lamego e da Serra da Estrela. Sem lhe chamarmos assim, era quase uma loja gourmet.
Essa aposta na qualidade e proximidade fez com que a Pitau se tornasse mais do que um comércio. Foi durante décadas um ponto de encontro, de conversa à porta e de vizinhança. Muitos clientes tornaram-se amigos, e é isso que celebramos nestes 50 anos, muitas memórias, dedicação e uma família sempre de portas abertas.
Celebrámos o meio século de existência com uma festa que decorreu em junho no Arneirense e reuniu a família Pitau, amigos, colaboradores e ex-colaboradores, diretores dos agrupamentos de escolas, autarcas e entidades. Distribuímos uma lembrança a todos. Foi uma celebração muito bonita, marcada pela presença da minha irmã Conceição, que viria a falecer pouco depois.
J.C. – O nome “Pitau” tem uma origem curiosa. Quer partilhar essa história connosco?
J.S. – O nome “Pitau” nasceu de forma muito simples e familiar. O meu sobrinho João Luís, filho da minha irmã Conceição, chamava “pitau” aos pintos do avô, enquanto corria atrás deles. Quando procurámos um nome para a nova loja, a minha cunhada Teresa Serrenho, que infelizmente também já nos deixou, sugeriu que adotássemos essa palavra que o menino repetia com graça.
J.C. – Em 1988 decidiu mudar completamente de ramo. O que o levou a apostar na papelaria?
J.S. – A mudança surgiu de uma oportunidade. Em 1988 adquirimos um novo espaço na Rua D. João II, junto à Escola Secundária Raul Proença. O Bairro dos Arneiros era então muito diferente do que é hoje, mas a proximidade à escola fez-nos perceber que havia ali uma necessidade clara que era material escolar e serviços de papelaria. A minha mulher estava ligada ao ensino, o que reforçou a ideia.
Ainda mantivemos durante um ano os dois negócios, a charcutaria e a papelaria, mas rapidamente percebemos que gerir ao mesmo tempo chouriços e cadernos era incompatível. Optámos pela especialização e, em 1989, também a loja da Rua Sebastião de Lima foi convertida. A Pitau reinventou-se como livraria e papelaria, mas manteve sempre aquilo que a distinguia – o ambiente familiar, a proximidade e o atendimento tradicional que continua a marcar gerações nas Caldas.
J.C. – A Pitau mantém um atendimento com alguém sempre disponível no balcão. Esse contacto direto ainda faz a diferença hoje em dia?
J.S. – No comércio tradicional, a proximidade é fundamental. Se não houver conhecimento profundo dos produtos e capacidade para interpretar o que o cliente realmente procura, o negócio perde identidade. Na Pitau sempre apostámos numa relação direta, formação contínua e compreensão das necessidades de quem nos procura. É isso que nos permite orientar cada cliente e continuar a fazer a diferença.
J.C. – Quantas pessoas integram a equipa? Os recursos humanos são uma parte essencial do sucesso da Pitau?
J.S. – A equipa é composta por quatro pessoas ao longo do ano, número que duplica na altura do regresso às aulas. Temos colaboradores com muitos anos de casa, e isso é decisivo para a qualidade do atendimento. Os recursos humanos não são apenas importantes, são absolutamente fundamentais. Podemos ter bons produtos e bons preços, mas sem uma equipa dedicada nada funciona.
J.C. – Aderiu aos vouchers escolares do Governo para os manuais escolares. Como funciona esse processo?
J.S. – Aderimos ao sistema de vouchers desde o início, em 2019. No começo foi um risco, sobretudo pela necessidade de capital para suportar o período entre receber o voucher e receber o respetivo pagamento, que pode ser longo.
A gestão dos vouchers exige muita organização e atenção ao detalhe. Durante essa fase temos pelo menos três pessoas dedicadas ao processo, para minimizar erros e garantir respostas rápidas às famílias. É um trabalho exigente, mas temos conseguido dar uma boa resposta.
J.C. – Trabalhar tantos anos no mesmo espaço cria laços. Que importância têm os clientes e a comunidade para si?
J.S. – Temos clientes que são quase família. Conhecem-nos bem e nós também conhecemos as suas dificuldades e alegrias. No comércio tradicional ainda perdura essa relação humana: quem entra na loja não é apenas um comprador, é uma pessoa com a sua história. Procuramos compreender e respeitar cada cliente. Esse vínculo genuíno cria confiança e promove a fidelização.
J.C. – Qual considera que foi o segredo para a Pitau continuar a ser uma referência nas Caldas durante meio século?
J.S. – A proximidade, a resiliência e a capacidade de antecipar necessidades têm sido essenciais. Procuramos estar atentos ao mercado e responder rapidamente ao que os clientes precisam. Muitas vezes ouvimos dizer que, se algo não existe na Pitau, dificilmente se encontra noutro lugar. Não sei se será exatamente assim, mas mostra bem a confiança que depositam em nós. Trabalhamos para ser assertivos e garantir que quem entra na loja encontra o que procura.
J.C. – O comércio tradicional faz parte da identidade das Caldas, mas nem sempre tem vida fácil. Que dificuldades sente hoje e o que podia ser feito para o manter vivo e forte?
J.S. – Reconheço o esforço da associação comercial e do Município na promoção do comércio tradicional, mas a verdade é que os desafios cresceram muito com o comércio online e a facilidade dos centros comerciais. Não é fácil competir.
No nosso caso, há uma dificuldade muito concreta, que é o fecho do acesso à Rua D. João II na Rotunda dos Arneiros. Era para ser um período experimental de alguns meses, mas já passaram anos e o resultado tem sido um isolamento crescente da nossa loja e de outros estabelecimentos da zona. A circulação tornou-se confusa, há condutores que se perdem e o movimento diminuiu o que significa menos visibilidade.
Recordo-me até de uma capa do Jornal das Caldas, de há 11 anos, onde os comerciantes da Rua Heróis da Grande Guerra pediam exatamente o mesmo, que era a reabertura ao trânsito, depois de perceberem que o encerramento estava a matar a vida da rua. Guardo ainda esse jornal, porque as razões eram as mesmas que sentimos hoje aqui na Rua D. João II, junto à Escola Raul Proença.
O que pedimos é que a entrada na rotunda seja reaberta. Acreditamos que devolveria movimento, visibilidade e vitalidade ao bairro.
J.C. – Como gostava de ver a Pitau no futuro?
J.S. – Não peço grandeza nem ambições exageradas. O que desejo para a Pitau é que continue viva. Que resista às mudanças, que mantenha a proximidade, a qualidade e os preços justos que sempre procurámos oferecer. Temos consciência de que trabalhamos com produtos de qualidade a preços muito competitivos, e é isso que nos distingue.
O meu desejo é que esta filosofia permaneça, comigo ou com quem vier depois. Que a Pitau tenha condições para continuar, para servir a comunidade e para fazer parte da vida das Caldas por muitos anos. Não sabemos se vamos chegar ao centenário, mas 50 anos ninguém nos tira!
J.C. – Como avalia as Caldas da Rainha enquanto cidade na atualidade?
J.S. – As Caldas têm um potencial enorme, sobretudo pela sua localização e pela qualidade de vida que oferece. No entanto, para que esse potencial se realize plenamente, é preciso um ordenamento mais equilibrado, social, urbano e comercial. Nota-se uma grande concentração de investimento e atenção no centro da cidade, enquanto muitos bairros ficam para segundo plano.
Falo com conhecimento de causa. A Pitau tem a sua sede no Bairro dos Arneiros, onde estamos com muito orgulho, mas gostaria de ver uma atenção maior não só a este bairro, como também às Morenas, a São Cristóvão e a tantas outras zonas periféricas que têm vida própria e que poderiam ter ainda mais. Uma cidade não vive apenas do seu centro, vive dos seus bairros e das pessoas que os habitam.
Vivo há 60 anos nas Caldas. Vi a cidade crescer e desenvolver-se, por vezes de forma algo desordenada, mas acredito que há margem e vontade para melhorar. Quem lidera os destinos da cidade tem de estar atento aos novos fenómenos comerciais, empresariais, sociais e demográficos. As Caldas estão a atrair cada vez mais pessoas vindas de fora, aproximam-se gradualmente da dinâmica da Grande Lisboa, e isso traz oportunidades, mas também desafios. O importante é garantir que esse crescimento seja equilibrado e que continue a existir uma convivência saudável entre todos.
J.C. – Fora do trabalho, como gosta de passar o tempo? Há algum hobby ou rotina que não dispensa?
J.S. – Tenho uma vida bastante preenchida, mas procuro sempre manter atividades que me dão prazer. Gosto muito de jardinar, semear, acompanhar o crescimento da horta e consumir aquilo que produzo é um hobby que me dá grande satisfação.
Durante muitos anos tive também outra paixão: a rádio, sobretudo na área desportiva. Passei por várias estações Rádio Litoral Oeste, TSF, Rádio Clube das Caldas e 91FM, sempre acompanhado pelo meu colega destas andanças, o Jorge Galeão. Guardo essa experiência com muito carinho.
J.C. – Que tipo de música ou artista costuma ouvir? Há alguma canção que o acompanha há muitos anos?
J.S. – Gosto muito de música, embora hoje aprecie sobretudo música de ambiente. Há, no entanto, uma canção que me marcou e que continua a acompanhar-me, que é Bridge Over Troubled Water, de Simon & Garfunkel. Volto a ela muitas vezes.
J.C. – Se tivesse de se descrever em três palavras, quais escolheria?
J.S. – Tolerante, um pouco rezingão, mas sobretudo amigo dos outros.










