Enquanto se discute o local do novo hospital, o verdadeiro debate é outro: o que é que o Oeste precisa – mais paredes, ou mais inteligência?
A história das Caldas, nascida de um gesto de cuidado, ensina que o progresso não se mede em metros de betão, mas em anos de vida com qualidade. Terminadas as promessas eleitorais, é tempo de medir o que existe e planear o que falta.
Portugal vive há décadas sob o mito de que o betão resolve carências estruturais – mas a evidência mostra o contrário: quanto mais se constroem edifícios, mais se agrava o desperdício e a escassez de recursos humanos.
Este é o mito central do SNS português: confundir parede com capacidade, e obra física com desempenho clínico.
Integração por cumprir: onde se perde valor
A integração dos hospitais das Caldas da Rainha, Torres Vedras e Peniche na nova ULS Oeste foi formalmente concluída em 2024, no âmbito da reestruturação do Serviço Nacional de Saúde (Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de Agosto). No entanto, a transição administrativa não se traduziu ainda em verdadeira integração funcional.
O Oeste dispõe de uma rede hospitalar completa – Caldas da Rainha, Torres Vedras, Peniche e o Hospital Termal, o mais antigo do mundo em funcionamento contínuo – além de uma vasta rede de centros de saúde e unidades de cuidados primários. Juntos, estes serviços poderiam constituir um sistema eficiente, se houvesse coordenação clínica, digital e logística.
A ARSLVT e o Tribunal de Contas reconhecem, nos seus relatórios mais recentes, que a ULS Oeste, concebida para integrar hospitais e cuidados de proximidade, ainda funciona como um conjunto de serviços com fronteiras porosas e coordenação limitada. Persistem redundâncias, listas de espera cruzadas, défice de planeamento e falta de interoperabilidade digital.
O maior défice é ínvisível: a perda de inteligência organizacional
Décadas de gestão centrada em quick fixes – remendos que tratam o sintoma, mas não a causa – corroeram a capacidade institucional de aprender com o erro, partilhar conhecimento e planear de forma sistémica.
A crescente dependência de tarefeiros, já custa ao Serviço Nacional de Saúde muitos milhões de euros por ano (CFP 2024). Estes vínculos precários resolvem a urgência no imediato, mas desmantelam equipas, quebram a continuidade assistencial e impedem a sedimentação do conhecimento que deveria permanecer dentro das instituições.
O resultado é um paradoxo estrutural: um sistema que paga cada vez mais – para aprender cada vez menos. Um SNS reactivo, que gasta energia a apagar fogos, em vez de construir capacidade para antecipar, prevenir e transformar.
Quando se mede, compreende-se: o custo da ineficiência
Entre 2015 e 2024, a despesa pública em saúde cresceu mais de 45 %, ultrapassando os 15,5 mil milhões de euros anuais – o valor mais elevado de sempre no SNS. Porém, este esforço orçamental não se traduziu em ganhos proporcionais de desempenho nem em maior confiança dos cidadãos. O país está a gastar cada vez mais para entregar cada vez menos: a produtividade hospitalar mantém-se estagnada, as listas de espera aumentam e mais de 1,5 milhões de portugueses continuam sem médico de família.
Este quadro resulta de um duplo desiquilíbrio estrutural: do lado da procura, a pressão sobre o sistema cresce cerca de 6 % ao ano, impulsionada pelo envelhecimento, pela prevalência de doenças crónicas, pela pressão crescente das urgências inapropriadas e pela entrada de dezenas de milhares de novos residentes que, sem capacidade para seguros privados, recorrem ao SNS.
Do lado da oferta, a produção assistencial cresce apenas cerca de 4 %, limitada por falta de planeamento estratégico, métricas de desempenho e modelos de gestão incapazes de acompanhar as novas exigências demográficas e tecnológicas.
A este desiquilíbrio soma-se o impacto da inovação terapêutica: novas moléculas biológicas e medicamentos de precisão, embora clinicamente transformadores, aumentaram mais de 30 % o custo médio de tratamento na última década (OECD Health Expenditure Outlook 2024). O desafio não é gastar mais – é gastar melhor, com base em resultados e valor acrescentado para os cidadãos.
De acordo com o Tribunal de Contas (Relatório n.º 7/2023 – Eficiência e Sustentabilidade do SNS), entre 10 % e 15 % da despesa – até 2,3 mil milhões de euros por ano – perde-se em ineficiências e desperdício operacional. Esta discrepância entre investimento e resultados confirma um sistema que confunde despesa com progresso e onde a ausência de uma cultura de avaliação e responsabilização se tonou a principal causa do desperdício.
É neste contexto que se enquadra a ULS Oeste, resultante da integração dos ACES Oeste Norte e Oeste Sul, abrangendo Caldas da Rainha, Óbidos, Bombarral, Peniche, Lourinhã, Cadaval, Torres Vedras e Sobral de Monte Agraço – cerca de 300 mil habitantes (INE 2024; ULS Oeste – Relatório de Actividades 2024).
A produtividade hospitalar média em Portugal é cerca de 20 % inferior à europeia – reflexo da fragmentação de serviços e da duplicação de meios técnicos. Os dados são claros: apenas 35 % a 40 % das cirurgias nas unidades do Oeste são realizadas em ambulatório – valor alinhado com a média nacional, mas muito abaixo das metas da DGS e da OCDE, ambas acima de 60 % para procedimentos elegíveis. A discrepância não é teórica – é operacional. Enquanto a Europa caminha para eficiência, Portugal continua a pagar redundância.
Em síntese, esta divergência entre investimento, eficiência e resultados confirma um modelo assistencial ainda demasiado centrado no internamento, quando o futuro dos cuidados de saúde exige proximidade, agilidade, integração e literacia – princípios que definem a verdadeira sustentabilidade do SNS e o sentido estratégico que deve orientar a integração da saúde pública e privada
Um sistema desequilibrado
Portugal dispõe de 3,5 camas hospitalares por mil habitantes (OCDE: 4,3), 5,6 médicos (OCDE: 3,7) e apenas 7,4 enfermeiros (OCDE: 9,2). A desproporção é evidente: temos mais médicos do que a média, mas menos enfermeiros e menos camas.
E camas não são “mais camas” sem equipas: cama ≠ cama operacional. A capacidade física não se traduz automaticamente em capacidade assistencial. Este desequilíbrio é a marca de um sistema que insiste na solução do betão quando o verdadeiro bloqueio está nas pessoas, na prevenção e na gestão. (Fonte: OECD – Health at a Glance: Europe 2024 – State of Health in the EU Cycle, Paris, 2024.)
O preço do desperdício na ULS Oeste (2024)
Com base em dados oficiais – ACSS / CFP (prestação de serviços e trabalho suplementar), ERS/SPMS (triagem via SNS 24), Tribunal de Contas (eficiência no SNS) e literatura da OCDE sobre desperdício – o padrão é inequívoco: o problema do SNS não é falta de dinheiro; é a forma como o dinheiro é utilizado.
Em 2024, o SNS gastou cerca de €231 milhões em prestação de serviços (tarefeiros) e ~ €465 milhões em trabalho suplementar – rubricas distintas que expõem uma dependência crónica de soluções de curto prazo: resolve-se o turno, mas não se resolve o sistema.
Em paralelo, entre os utentes encaminhados via SNS 24 e admitidos em urgência, cerca de metade recebe triagem verde/azul – isto é: pouco ou não urgente. Não é incúria dos cidadãos. É falha estrutural: acesso primário insuficiente, literacia deficiente e fraca triagem clínica a montante.
A OCDE é clara: todos os sistemas de saúde têm desperdício – a diferença é se o medem ou se o ignoram. O Tribunal de Contas também é claro: o desperdício nasce mais da duplicação, fragmentação e subutilização do que da falta de edifícios. A ULS Oeste não é excepção – é o espelho.
A pergunta essencial não é quem errou – é porque se continua a decidir sem medir antes.
Se o Oeste quiser quebrar o ciclo nacional, a regra é simples: medir primeiro –decidir depois. Porque só quando se mede se compreende. E no Oeste, medir não é luxo académico: é o que separa mais betão… de mais inteligência.
Aprender com o que existe
O Oeste não precisa de mais betão, precisa de mais inteligência. Antes de construir um novo hospital, deveríamos consolidar o que já existe:
Reforçar o ambulatório e a medicina domiciliária;
Unificar os sistemas de informação clínica;
Integrar os cuidados continuados e paliativos;
Valorizar o papel preventivo do Hospital Termal das Caldas da Rainha, fundado em 1485 por D. Leonor, símbolo de uma medicina solidária e regeneradora.
A destruição criativa de que falam Aghion e Howitt – e que desenvolvi no artigo “Economia da Inovação e a Zona Azul do Oeste” (20 Outubro 2025) – não é demolir paredes, é substituir o velho modo de pensar por novas formas de gerir e cuidar.
Quando há hospitais que cheguem, o investimento mais inteligente é o que evita que as pessoas lá precisem de ir.
Conclusão
O novo Hospital do Oeste será necessário mas só criará valor se vier com inteligência organizacional, integração funcional e interoperabilidade real. Sem isso, será apenas mais cimento a repetir o mesmo desperdício.
Novo Hospital do Oeste – alta complexidade e trauma agudo.
E os hospitais actuais não se fecham – reconfiguram-se: Caldas da Rainha – ambulatório e imagiologia avançada; Torres Vedras – hospital-dia e circuitos programados; Peniche – continuados, paliativos, dependência e reabilitação respiratória.
Modelo racional: um eixo central moderno + três satélites especializados – em vez de três mini-hospitais generalistas a competir pelos mesmos recursos.
E o Hospital dos Banhos é o pilar preventivo: reduz cronicidade, evita surtos, prolonga autonomia. Não compete – complementa. É o activo que mantém as pessoas fora do internamento.
Valor em saúde não nasce do cimento. Nasce da inteligência aplicada.
Na próxima publicação:
Parte 3 – Oeste Azul: Saúde, Sustentabilidade e Inteligência Territorial
O texto segue a ortografia culta da Língua Portuguesa, por respeito à sua matriz histórica e etimológica.









