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Síndrome de Jerusalém

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Em 1917, o antropólogo Alfred Louis Kroeber escreveu o famoso artigo intitulado “O Superorgânico”, que rompeu de vez pretensas relações entre cultura e quaisquer características genéticas dos indivíduos. Segundo Kroeber, é pela cultura que nos distanciamos do mundo animal. Enquanto os animais são dominados pelos instintos, nós somos influenciados pela aprendizagem, pela cultura. Um cão que nunca tenha convivido com outros cães irá sempre ladrar, abanar a cauda e alçar a perna. Já uma criança nascida na Antártida, mas trazida para Portugal e educada por portugueses será portuguesa.

Em 1917, o antropólogo Alfred Louis Kroeber escreveu o famoso artigo intitulado “O Superorgânico”, que rompeu de vez pretensas relações entre cultura e quaisquer características genéticas dos indivíduos. Segundo Kroeber, é pela cultura que nos distanciamos do mundo animal. Enquanto os animais são dominados pelos instintos, nós somos influenciados pela aprendizagem, pela cultura. Um cão que nunca tenha convivido com outros cães irá sempre ladrar, abanar a cauda e alçar a perna. Já uma criança nascida na Antártida, mas trazida para Portugal e educada por portugueses será portuguesa.

Os humanos superam o orgânico, superam os instintos, são superorgânicos. Superamos até o processo de adaptação natural e somos a única espécie capaz de criar os próprios instrumentos de adaptação: enquanto os animais desenvolveram asas, nós desenvolvemos o avião.

A antropóloga e folclorista norte-americana Ruth Benedict dizia que a cultura é como uma lente através da qual o ser humano vê o mundo. Ou seja, a cada cultura corresponde uma visão diferente do mundo. A forma como valorizamos ou desvalorizamos alguma coisa e os nossos comportamentos sociais devem-se à herança cultural. Mas, cada um ver o mundo através da sua cultura tem como consequência a propensão para considerar o seu modo de vida como o mais correcto ou até mesmo o único possível. Isto é o etnocentrismo. O problema é que ao considerarmos a nossa cultura, os nossos valores, como referência, as outras culturas parecer-nos-ão ou erradas ou estranhas ou bizarras. O etnocentrismo leva à intolerância.

O que se deve esperar do secretário-geral da ONU, seja ele oriundo de qualquer zona do planeta, é equidistância e que fale para o mundo e não só para uma parte. Foi o que fez António Guterres, a propósito de mais este horrífico confronto israelo-palestiniano. Sem surpresa, chocou muitos ocidentais que têm como natural e única a sua perspectiva etnocêntrica. Choveram objecções condenando o secretário-geral por, afinal, ter ousado defender também o outro.

Lê-se na primeira estrofe do poema “Sobre a Violência” de Bertolt Brecht: «Do rio que tudo arrasta se diz que é violento / Mas jamais se diz da violência / Das margens que o cerceiam». Guterres teve a coragem de dizer que vê o rio mas também as margens, e ao fazê-lo conseguiu ser superorgânico. Superétnico, neste caso.

O jornalista e escritor inglês Simon Sebag Montefiore, no seu extenso livro de 2015 “Jerusalém – A Biografia”, refere uma doença psiquiátrica designada Síndrome de Jerusalém que afecta peregrinos, ao ponto de haver um departamento especializado num hospital da cidade que recebe cerca de 100 pessoas por ano com esta perturbação. A causa é a decepção e o desejo frustrado de posse da cidade. Um dos sintomas recorrentes é o roubo de toalhas brancas nos hotéis, para as fazer abençoar — possuir a cidade através de qualquer coisa que a represente ou resuma. Jerusalém é para os crentes O local sagrado, maravilhoso, que choca com a realidade da cidade mais confusa, mais barulhenta, mais raivosa e furiosa e caótica e empoeirada que há no mundo.

Na óptica de Montefiore, quem quer que obtenha o controlo da cidade sofre deste desejo de posse. Os monoteísmos etnocêntricos, mutuamente exclusivos, que a querem dominar e possuir, impõem que se creia de uma única maneira, o que não permite compromissos.

Jerusalém é o centro da maior discórdia da Humanidade — Jerusalém significa em hebraico paz, completude, harmonia — e esta é a verdadeira decepção, para os peregrinos e para toda a gente.

Escrevo segundo o anterior acordo ortográfico.

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