O Tribunal da Relação de Coimbra reduziu a pena de prisão por seis crimes de maus-tratos a crianças a uma antiga educadora de uma instituição das Caldas da Rainha com valências de creche e pré-escolar. A 21 de dezembro do ano passado tinha sido condenada a cinco anos e três meses de prisão, mas recorreu do acórdão e viu ser-lhe aplicada uma nova pena – quatro anos e seis meses de prisão – ou seja, menos nove meses.
A execução da pena foi suspensa pelo período de cinco anos. “A simples censura dos factos e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, sobretudo se acompanhado da fixação de deveres”, sustentou o novo acórdão, datado de 11 de junho deste ano.
Foi fixada a condição de no prazo de dois anos, depositar a quantia de mil e quinhentos euros a favor de cada uma das cinco vítimas identificadas, “como reforço do conteúdo educativo e pedagógico da pena”. Foi proibida, durante o respetivo prazo, de exercer qualquer atividade que implique ter menores à sua guarda e responsabilidade, “como reforço preventivo da reincidência”. O resto da decisão tomada inicialmente foi confirmado.
O Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, defendeu a redução da pena e a suspensão da sua execução, apesar da arguida só ter admitido os factos que praticou numa das situações e não ter mostrado qualquer arrependimento.
“Neste tipo de casos, as razões de prevenção geral são elevadíssimas, porque se vão repetindo, porque, dadas as dificuldades de prova, muitos crimes ficam impunes, e porque as vítimas são especialmente vulneráveis. As instituições que acolhem as crianças não as podem tratar desta forma”, manifestou o Tribunal da Relação de Coimbra, mas entendeu que “o Tribunal recorrido se afastou substancialmente das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais para casos similares”, pelo que “justifica-se, por isso, a intervenção corretiva deste tribunal”, indo parcialmente ao encontro da reclamação da arguida, que entendia que “a prova produzida em audiência de julgamento é manifestamente insuficiente para que o tribunal pudesse decidir pela condenação”.
O Tribunal de Leiria tinha considerado que as crianças foram expostas na Unidade de Desenvolvimento Integrado das Caldas da Rainha da NucliSol Jean Piaget, no Campo, a “um ambiente de terror psicológico, violência e agressividade”, no período compreendido entre 2018 e 2020, até à altura em que o caso foi denunciado por outra educadora, que estava na instituição em regime experimental e que revelou ter-se apercebido de situações anómalas.
A educadora, de 58 anos, respondia por onze crimes de maus-tratos, sendo condenada por seis. As vítimas, com idades compreendidas entre os três meses e os quatro anos, algumas delas com necessidades educativas especiais, seriam agredidas com palmadas, agarradas pelos braços, atiradas para o chão e sobre superfícies duras, e abanadas, tudo com muita força. “Tratava-as como se fossem um saco de batatas”, sublinhou a juíza-presidente.
“O que fez é gravíssimo”, afirmou, na leitura do acórdão, a magistrada, que manifestou que a sociedade “tem de proteger” os menores.
Entre as situações que o Tribunal deu como provadas estão os momentos em que a educadora agarrou pelos cabelos uma menina de onze meses que frequentava a creche, para que permanecesse deitada no fraldário, e em que na sala do berçário, à hora de almoço, desferiu uma chapada de mão aberta na face de outra bebé, dizendo que “essa é difícil para comer”.
Foram também relatados os momentos em que “frequentemente sentava os bebés com menos de um ano, ainda sem capacidade de marcha, no bacio completamente despidos. Em consequência, as crianças começavam a chorar compulsivamente”.
Há episódios em que atirou uma criança de um ano com força para cima de uma bancada de mudança de fraldas, dizendo-lhe “oh meu raio te parta que por tua culpa estás a acordar os outros bebés”, e em que pegou num bebé também de um ano e projetou-o com força em direção ao catre de plástico e duro, que se encontrava ao nível do chão, onde as crianças habitualmente dormiam a sesta, e em que pegou outra criança por apenas um dos braços, deixando-a assim suspensa no ar.
O coletivo de juízes deu igualmente como provado, entre outros factos, que, numa ocasião, a um bebé que chorava sofregamente por ter fome, disse-lhe “vais comer quando eu quiser e não quando tu queres”.
Quando este parou de chorar, a educadora retirou-lhe “bruscamente a chupeta” e começou “a inserir na sua boca, com força, de forma repetida e sucessivamente”, sem o deixar respirar e engolir, colheres de sopa.
Noutra altura, quando um menino se encontrava a beber o biberão, “com força retirou-lhe da boca, ao mesmo tempo que lhe dizia ‘agora sou eu que não quero que bebas mais’”.
Um dos acontecimentos foi até presenciado pela mãe de uma criança, colocada sentada, com as pernas cruzadas, de frente para uma parede, enquanto todas as outras crianças brincavam. A mãe, de imediato, solicitou esclarecimentos à arguida, que lhe respondeu que o filho “estava de castigo porque não sabia partilhar os brinquedos”, “o seu filho é um preguiçoso, não come sozinho, não dorme sozinho, só quer colo, não me deixa fazer nada! É a ovelha negra da turma”.
Ex-ajudante também condenada
A pena de dois anos e seis meses de prisão foi aplicada a uma ex-ajudante de ação educativa/administrativa, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova (assente num plano de reinserção social entendido como adequado), por dois crimes de maus-tratos. Também recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, mas a decisão não foi alterada.
A arguida auxiliava as restantes educadoras de infância que exerciam funções a cuidar das crianças aquando do almoço destas no refeitório, substituindo-as nas faltas ao trabalho.
O Tribunal de Leiria tinha dado como provado que a uma criança do pré-escolar, perante a sua resistência em beber o leite, a ajudante de ação educativa, de 48 anos, agarrou-a pelas costas e “colocou-lhe, à força, a caneca na boca, com uma das mãos e, com a outra mão, segurava a criança pelo queixo, obrigando-a a beber”, pelo que a menor ficou “completamente molhada e com leite a escorrer pela boca”.
Entre os episódios conhecidos estão alguns em conjugação de esforços e de vontades com a educadora condenada, nomeadamente envolvendo uma criança autista, obrigada, com sofrimento, a engolir comida.
Noutra vez agarrou uma criança vigorosamente por um dos braços, elevou-a no ar e sentou-a à força numa cadeira, e nem a presença do pai a inibiu: “Aqui quem manda sou eu e não é por estar aqui o teu pai que vai ser diferente, pois quem manda aqui sou eu!”
Quando se encontrava no interior do refeitório, conjuntamente com várias crianças, dos três aos seis anos, agarrou num prato de aço inoxidável e bateu com o mesmo vigorosamente numa mesa, causando medo e levando algumas delas a chorar.
À data dos factos julgados, frequentavam a instituição 49 crianças, distribuídas pelas salas do berçário, 1.º ano e 2.º ano e pré-escolar, com idades compreendidas entre os três meses e os seis anos.
Após receber as denúncias, o Ministério Público mandou o Núcleo de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas (NIAVE) do Comando Territorial de Leiria da GNR deter as duas arguidas e apresentou-as a primeiro interrogatório judicial no dia 27 de novembro de 2020. Na altura, ambas ficaram proibidas de contactar e de trabalhar com crianças enquanto não se conhecesse o desfecho do caso.
Para o Tribunal de Leiria, as arguidas condenadas agiram “com o propósito de molestar física, verbal e psicologicamente as crianças que estavam ao seu cuidado, completamente indefesas e incapazes de se queixar, sabendo que a sua atuação lhes causaria, necessariamente, perturbações que se traduziriam em alterações comportamentais graves, capazes de pôr em causa o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso”.
Durante o julgamento, a antiga educadora refutou as acusações e assegurou que durante os “quase 23 anos” que trabalhou na creche nunca teve qualquer queixa de pais relativamente a crianças maltratadas.
Questionada pela juíza-presidente sobre qual a explicação que dava para os factos que lhe eram atribuídos, a arguida declarou: “A única explicação que vejo é que só tenho o 12.º ano e havia pessoas com ensino superior e achavam que eu não estava bem ali, que ali não era o meu lugar”.
No julgamento em Leiria uma antiga auxiliar, que integrava o quadro de pessoal do berçário, tinha sido absolvida dos três crimes de que era acusada e essa decisão não foi alvo de nova análise.
Em 2022 foram ilibadas de responsabilidades a então coordenadora principal da instituição das Caldas da Rainha, assim como a NucliSol Jean Piaget. O juiz de instrução decidiu não haver provas e determinou o arquivamento.
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