A História é feita do encontro, confronto e mistura de culturas. E a cultura é reactiva aos momentos históricos, incorpora-os e condiciona-os. A actual diabolização da apropriação cultural ignora que não há culturas autênticas. A cultura é dinâmica e a última metamorfose abre-se à mutação seguinte.
Individualmente, somos o somatório do que nos acontece e absorvemos, consciente e inconscientemente, ao longo da caminhada; socialmente, toda a cultura é mestiça, misturando continuamente tradições e raízes identitárias que vêm do fundo dos tempos e se perdem na História, num perpétuo processo de ressimbolização.
Como se sabe, a literatura (e a generalidade das formas de expressão que produzem ficção) é sempre, num primeiro momento, mais ou menos autobiográfica: efabula-se o mundo a partir do próprio ponto de vista resultante das idiossincrasias e experiências pessoais. Depois, enfrenta-se o desafio da empatia e de ver o mundo pelos olhos das várias personagens que compõem a narrativa. O escritor, realizador ou dramaturgo tanto cria, a partir de si próprio, a personagem de um cidadão banal, como interpreta as vivências e lógicas de um escafandrista homossexual londrino, e os dilemas da mãe transgénero desse escafandrista, nascida na Papua-Nova Guiné.
Mas eis que surge um movimento identitário e concomitante condenação da apropriação cultural. Agora, só uma mãe transgénero, originária da Oceânia, de um escafandrista homossexual britânico pode criar livros ou filmes ou bailados acerca dessa particular relação familiar. Quando a questão da identidade é de género ou sexual, a intolerância é absoluta — cancele-se quase todo o Chico Buarque; cancele-se Zeca Afonso e o seu Menino do Bairro Negro… Que se abstenha quem não é da mesma origem étnica ou sexual das personagens. Isto, se a possibilidade de ser insultado e cancelado não for o lado para que se durma melhor. Quem não percebe que estamos perante a negação da literatura, da ficção, da capacidade de inventar personagens? Quem não percebe a negação da arte e da criatividade?
Mas, se toda esta exaltação identitária pode ser um irresistível filão anedótico, sobrevém o imperativo solidário de se darem oportunidades profissionais aos grupos minoritários, muitas vezes sujeitos a dupla discriminação (homossexual negro, mulher negra, et cetera), pessoas que normalmente nem são consideradas.
Hoje, seria impensável caracterizar um actor branco para fazer a personagem de um nativo-americano ou de um negro. O blackface está morto e enterrado e é uma nódoa para quem o praticou ainda no século XX (como foi o caso do gigante do teatro e do cinema Laurence Olivier), e seria impensável nos nossos dias. É tempo de a mesma ética profissional chegar naturalmente a todos os grupos LGBTQIAP+.
Escrevo segundo o anterior acordo ortográfico.
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