É importante o debate acerca do peso das palavras, ou de quaisquer formas de expressão, e do seu potencial ofensivo e prejudicial para diferentes grupos.
Por causa desse debate, a discriminação contra mulheres e populações menorizadas pela cor, religião, orientação sexual e identidade de género, no acesso ao trabalho, a empréstimos e seguros, a diagnósticos e cuidados de saúde, nas sentenças judiciais, e num imenso et cetera, é prontamente detectada e exposta e só gente cretina ou mal-intencionada se sente hoje tentada a prossegui-la; também só poderes políticos asnáticos e possidónios, ignorando que a diversidade é o maior garante de paz e progresso, se permitem criar monumentos que celebrem figuras proeminentes do colonialismo, por exemplo.
Mas, todo este activismo inclusivo, inicialmente meritório, como o movimento anti-racista Black Lives Matter, transformou-se nesta pseudo-religião conhecida por cultura woke. Este apostolado grassa nas sociedades democráticas e tem como novidade a repressão ser exercida por cidadãos. Até aqui, apenas se conhecia a censura aplicada pelo Estado.
Em nome do combate ao racismo, misoginia, homofobia, gordofobia e ao mais que lhes aprouver, os wokes consideram-se moralmente superiores e iluminados, armam-se em “revisores de sensibilidade” (ou lá o que é) e permitem-se ameaçar, proibir e escolher o que se pode ou não ver, dizer ou fazer, chegando a vestir estátuas e a reescrever obras-primas. Estes prosélitos do bem puritano procuram impor uma linguagem depurada e anódina. Na literatura, substituem gordo por grande, nativo por local, eliminam palavras como preto, branco, castanho, oriental, louco, doido, e falas de personagens que sejam insultos. Não gostam, por exemplo, que se celebre o dia do pai. Embirram até com a palavra pai, preconizando que se diga “pessoa especial”. J. K. Rowling passou a ser considerada transfóbica nos maiores sites de fãs, porque disse que as casas-de-banho mistas são perigosas para as mulheres. Os antigos fãs consideram agora que as declarações de J. K. Rowling são “perturbadoras”… É óbvio que o absurdo e sobretudo o ridículo acabarão por matar esta praga.
Entre nós, este “cancelamento” não tem tido expressão significativa, talvez por se pensar que é assunto tão interessante como a meteorologia, servindo apenas como variante de último recurso para conversa de circunstância; ou talvez por nos lembrar tempos de mordaça clerical e salazarenta ainda demasiado próximos. Salazar seria woke — acha para acalorar conversas —, tal como Marcello Caetano e toda a corja de censores que serviu o Estado Novo.
Na segunda das célebres sete entrevistas de António Ferro, o nosso Goebbels, a Salazar, publicada em Dezembro de 1932 pelo Diário de Notícias[1], à pergunta sobre se não seria tempo de acabar com a censura, Salazar responde: «Eu compreendo que a censura irrite, porque não há nada que o homem considere mais sagrado do que o seu pensamento e do que a expressão do seu pensamento […]; «Por que não a revoga, nesse caso?», insiste António Ferro, ao que Salazar argumenta: «[…] Não pode permitir-se que se ponham em dúvida actos ou números que traduzem a própria vida do Estado […]. É uma questão de decoro e dignidade pública. […] Não se justificará a censura, nestes casos, como elemento de elucidação, como correctivo necessário?».
[1] Ferro, António, Entrevistas a Salazar, Lisboa, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, Lda., 2007.
Escrevo segundo o anterior acordo ortográfico.
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