Escaparate
“Sobe ao trono português o duque de Bragança D. João 4º pela feliz revolução do 1º de Dezembro de 1640. Neste dia, o povo de Óbidos sacudiu também o jugo espanhol: caem de repente sobre os empregados e levantam o grito a favor do duque de Bragança e nomeiam empregados provisórios, porém foi tudo em tão boa ordem que não aconteceu o mais pequeno desastre a respeito de mortes. Depois de tudo em sossego, D. João 4º manda reparar e reformar o paço do concelho e manda pôr por cima das portas da Vila uma pedra com este letreiro: “A Virgem Nossa Senhora foi concebida sem mácula do pecado original.” Este rei repara alguns bocados de muralha, manda pôr as portas novas e tirar as antigas por estarem bastante velhas.”
O acesso ao interior do Castelo de Óbidos é feito através de quatro portas e dois postigos, sendo uma a Porta da Senhora da Piedade – rematada com o supracitado dístico, ali mandado instalar pelo Rei D. João IV (1604-1656) – situada no ponto meridional da cidadela.
Ao observarmos o interior do relatado acesso conseguimos contemplar uma capela-oratório, adereçada com uma sacada francesa barroca, e guarnecida por azulejos (1740-1750) azuis e brancos, com motivos simbólicos relativos à Paixão de Cristo: “A Agonia de Jesus no Horto” e “A Prisão de Jesus”, tendo, analogamente, o teto matizado, salientando-se neste uma grinalda de espinhos.
É de realçar a preocupação artística com a decoração, num período onde os castelos, com todas as suas estruturas, eram erguidos apenas para controlar a área circunvizinha. Uma edificação militar, que servia igualmente de centro de administração, símbolo de poder e Casa-Real.
Desde a sua construção, a Porta da Senhora da Piedade vem resistindo à ação predatória do ser humano (uma larga maioria que não consegue perceber a importância da arte para o seu crescimento e para a sua evolução idiossincrática e espiritual). A explicação para a manutenção desse património pode ser encarada, similarmente, de dois modos: antes do século XVIII existia a real necessidade de defesa da região, bem como a inevitabilidade do controle de todo o entorno; dessa centúria em diante, ocorreu um “encantamento” pelos castelos, seu todo e suas partes, devido à tradição do Romantismo e do Revivalismo Gótico.
Conquanto seja popularmente relacionada à Idade Média europeia, esse tipo de construção (castelos, fortalezas, fortins, etc.) originou-se no Crescente Fértil (o Berço da Civilização), seguindo-se as do Vale dos Hindus, do Egito e da China, vindo, portanto, desses lugares, o gosto pelo ornamento. Os azulejos são uma dessas dádivas. Essas pequenas peças foram propagadas na Península Ibérica no correr do século XVI, tendo o seu desenvolvimento inicial sido efetuado pelas mãos das cerâmicas de Sevilha, especialmente por Gabriel del Barco (1649-1701?), porém, foi El-Rei Dom Manuel I (1469-1521) o grande impulsionador da arte azulejar em Portugal, ao permitir a inclusão artística da fulguração, da intensidade e da criatividade dos fundamentos decorativos do Oriente (além de ter importado da China o tom azul da porcelana) naqueles “bocados de arte”.
Na sequência, no final do século XVII, Portugal encomendou à Holanda enormes quantidades de azulejo, exuberantemente puros e refinados, importando-se, também, a excelência dos pintores que os iriam ornar. No século XVIII, em notável momento, D. João V (1706-1750), concede aos artistas a permissão para que os azulejos sofressem influência da Talha, concebendo, assim, um visual de distintiva barroca a muitas obras, entre elas, como se pode comprovar in loco, a da Porta da Senhora da Piedade.
Adentrar o Castelo de Óbidos por essa entrada, pode ser uma experiência das mais gratificantes, se deixarmos a nossa imaginação percorrer os escaninhos mais recônditos da nossa memória coletiva. Em silêncio. Respeitando os mortos e não incomodando os seus espíritos.
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