CALDAS DA RAINHA, 1922
Chegados ao 95º aniversário da elevação das Caldas da Rainha a cidade e um ano depois de o Jornal das Caldas me entrevistar para eu iniciar esta colaboração anual, a presença desta vez concretiza-se através de um artigo, aflorando alguns aspetos do ano de 1922, em resultado de uma pequena investigação realizada para este fim.
O ANO NUM VOO
Vivia-se um período de intensa atividade política e partidária e repleto de competição, revoltas, propaganda e até assassinatos. Embora Portugal tivesse entrado na Grande Guerra essencialmente por motivos que se prendiam com a manutenção do estatuto e da integridade das colónias no pós-guerra e se encontrasse entre os Aliados vitoriosos, o fim do conflito não veio minorar as dificuldades financeiras nem acalmar a agitação social do país. O aumento do custo de vida era contínuo e a valorização do metal levou a que diversas instituições, desde Câmaras Municipais a Associações Comerciais, passando por mercearias, papelarias e Misericórdias, emitissem, entre 1917 e 1922, papel-moeda de baixo valor, as cédulas, referidas em primeira página do número de 1 de novembro de 1922 de A Gazeta das Caldas: “imundas e pestilentas cédulas”. Mas estas tinham facilitado os trocos e substituir as moedas, entretanto quase desaparecidas da circulação.
Em termos de periódicos caldenses, existiam O Defensor e O Regionalista, de cariz político e em extremos opostos, para além dos criados nesse ano (A Gazeta das Caldas e O Recreio). Designadamente, o Defensor era dirigido por José Pinto e O Regionalista era dirigido por Custódio Maldonado Freitas e secretariado por Manuel José António, diretor da Escola Primária Superior das Caldas da Rainha. Ambos os periódicos se empenharam nas eleições administrativas que decorreram em novembro, não por poucas vezes lançando farpas um ao outro e aos seus candidatos. Entretanto, o diário lisbonense A Pátria publicou em diferentes números reportagens sobre as Caldas. O concelho tinha 14 freguesias e aquele periódico identificou, por exemplo, o mau estado (ou a ausência) das estradas do concelho, sendo “as freguesias mais infelizes” as de Serra do Bouro, Salir do Porto, Carvalhal Benfeito e Santa Catarina, assim como sublinhou a importância de se poder instalar um comboio elétrico entre a vila e o mar.
Também no seu primeiro número (8 de outubro de 1922), o periódico A Gazeta das Caldas refere que o elétrico estaria “para breve” entre as Caldas e a Foz do Arelho, Pelo contrário, há preocupação quanto ao fecho da abertura entre o mar e a lagoa. Nos números seguintes, por exemplo, alvitra-se a necessidade de o abastecimento de água ao domicílio ser feito por uma empresa. Nestas páginas, lê-se também as formações principais com os “onze gloriosos” de futebol do Caldas Sport Club, Águia Sport Club, Lusitanea Sport Club Caldense, Onze Foot-Ball Club e Caldas Sporting Club, “grupos modernos, que Caldas da Rainha possue”.
O Regionalista também se refere ao fecho da abertura da lagoa com o mar, de que é exemplo o recorte em anexo (24 de dezembro de 1922). No campo do ensino, o mesmo periódico alvitra a junção das aulas comercial e da escola de cerâmica com a Escola Primária Superior. Refere, também, a necessária abertura do balneário das Águas Santas. E, na sua edição de 2 de abril, informa sobre a partida, em março, de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, para a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, passando a noticiar o “voo glorioso” até ao final.
Sobre este último assunto, a Câmara Municipal das Caldas da Rainha registou em Sessão de Câmara de 17 de junho a dotação de 100$00 para as festas de homenagem aos dois aviadores, ao mesmo tempo que circulou pelos correios o selo comemorativo. Os festejos contaram com a Banda de Infantaria 5 que desfilou pelas ruas da vila, com o comércio aberto apenas até à hora do cortejo cívico e com as fachadas iluminadas pelos residentes. A propósito, a Associação dos Empregados do Comércio e Indústria organizou um baile para a angariação de fundos tendo em vista uma biblioteca própria, entregando aos contribuintes medalhas alusivas ao feito dos nossos aviadores.
No Hospital Termal, mantinha-se a atribuição da sua gestão a Comissões Administrativas, desde o início da I República. Uma nova Comissão Administrativa passou, entretanto, a ser presidida por Joaquim Flaviano de Campos Jardim, que fora em tempos redator do semanário “independente, litterario e noticioso” O Echo de Figueiró (1906-1907), dado que, como escrivão de Direito, fora transferido, em 1902, da Comarca de Almodôvar para a de Figueiró dos Vinhos. A abertura de época no 15 de maio fez-se com pompa e alegria, animada pela Filarmónica de Óbidos e com muitos forasteiros, e a temporada acabaria por ter muitos aquistas de diferentes pontos do país e de Espanha. O comércio não beneficiou do dia da abertura, pois, na época, a segunda-feira era o dia de encerramento de portas. A tendência tradicional de “ir a banhos”, juntamente com o aparecimento de outras termas mais recentes, equipadas com estabelecimentos balneares e hoteleiros concorrenciais, já provocava um decréscimo de frequentadores e uma diferente tipologia social nas Caldas, mas as forças locais avançaram para uma campanha de divulgação e recuperação da imagem urbana, através de ações de publicidade, de artigos e monografias locais e regionais, a fundação de novos clubes e equipamentos recreativos. Também a organização de exposições agrícolas e pecuárias atraía a classe dos proprietários e as competições desportivas hípicas, automobilísticas e de ténis eram destinadas a captar os apaixonados destas modalidades, muito em voga na época. As provas de hipismo com cavaleiros civis e militares eram regulares e afamadas, organizadas pela Associação Comercial e Industrial e realizadas na “esplanada da Mata do Hospital”, onde posteriormente foi instalado o campo de futebol, que ainda perdura, indevidamente, pelos impactos negativos na Mata. Importa referir que, pelo contrário, não se realizou a Exposição Agrícola, Pecuária e Industrial, que se iniciara em 1920 e que teria o seu epílogo precisamente no ano da elevação a cidade (5.ª edição).
O Regionalista refere a 1 de outubro de 1922 a realização, no Teatro Pinheiro Chagas, de diferentes récitas e de um ato de variedades intitulado “Do uso das águas e banhos das Caldas da Rainha e sua influência no casamento”, uma criação do poeta e escritor Pedro Bandeira, lida pelo ator Samwel Diniz. O Salão Ibéria tinha um ano de funcionamento, desde que, em 1920, o Hospital arrendara o terreno anexo aos Pavilhões (onde funcionara a carreira de tiro) para a construção de um teatro, que viria a ser inaugurado em janeiro de 1921.
Em 1922, iniciaram-se as obras da nova sede da Associação de Socorros Mútuos Rainha D. Leonor, para as quais foram oferecidos donativos e muitos objetos para leilão, para além de pelo menos uma corrida de touros, organizados pela Comissão Pró-Prédio (1922-1931). Nesse ano também se constituiu a firma Thomaz dos Santos, com uma loja, na qual vendia ferro, ferragens, solas e cabedais, cordoaria, alfaias agrícolas, carvão de forja e miudezas, que durante décadas viria a ser a mais importante empresa caldense. A indústria e o comércio de materiais começaram a florescer para além da cerâmica, iniciando um caminho que gradualmente deixou também para trás a importância hegemónica da economia das termas.
A VISITA DE MILY POSSOZ
Uma curiosidade desse ano que trago a este artigo prende-se com um apontamento que encontrei em documentos dispersos do arquivo pessoal de Diogo de Macedo, que eu adquiri em Lisboa num alfarrabista da Rua do Alecrim, mas que tal como muitas outros bens me foram furtados em circunstâncias lamentáveis (2015). Ainda assim, anotações que eu retirara antes deste sucedido permitem-me hoje referir a visita às Caldas, nesse ano, da pintora caldense Emília Possoz, acompanhada pelo pintor Eduardo Afonso Viana.
Emília Possoz (Caldas da Rainha, 4 de Dezembro de 1888 – Lisboa, 17 de Junho de 1968), conhecida por Mily Possoz, foi uma das figuras de maior destaque da primeira geração de pintores modernistas portugueses. Os seus pais, belgas, foram radicados em Portugal, em 1888, quando Henri Possoz aceitou exercer como professor de Química aplicada à Cerâmica na Escola Industrial das Caldas da Rainha.
De Antuérpia, Henri Possoz formou-se em Engenharia Química, optando pela carreira militar e tornando-se oficial do exército belga. Em meados da década de oitenta, conhece Jeanne Rosalie Leroy, natural de Soumagne, também na Bélgica, onde nascera a 7 de Dezembro de 1862. Em Janeiro de 1888, estavam em Londres, para onde tinham fugido para se casar. Pouco tempo depois, rumaram a Portugal, fixando-se nas Caldas da Rainha. Importa destacar que a família chegou às Caldas no mesmo ano de Rodrigo Berquó. Sem dados presentes, importaria investigar acerca da relação, próxima ou não, entre Henri Possoz e o administrador do Hospital Termal, durante a sua residência nas Caldas.
Depois de uma educação esmerada, Mily partiu para estudar em Paris, em outubro de 1906, na prestigiada Académie de La Grande Chaumière, possibilitando-lhe também viajar pela Europa. A partir de 1914 iniciou-se na ilustração, crescendo a sua participação como desenhadora de cartazes e cenários e como ilustradora em numerosas publicações portuguesas e estrangeiras. Precisamente há 100 anos, em 1922, foram-lhe recusadas algumas das suas pinturas para a coletiva na Sociedade Nacional de Belas Artes (“Sociedade de Belas Artes recusa, pela primeira vez, alguns trabalhos da pintora Milly [sic] Possoz. Uma injustiça que é um escândalo”. Coisas de Arte, Diário de Notícias, 25 de março de 1922, p. 5).
Nesse ano, iniciou regulares idas a Paris, acompanhada pelo pintor Eduardo Viana. Antes, porém, fizeram uma estada simbólica na sua terra de registo. Curiosamente, foi durante essa visita às Caldas que, segundo uma carta de Eduardo Viana para Diogo de Macedo (em Paris, desde o ano transato), refere estar Mily a dar os retoques finais na pintura “Ar Livre”, publicada ainda nesse ano na revista Contemporânea (vol. 2, n.º 4, out. 1922, p. 24), exemplo da temática da mulher, como um dos motivos centrais do seu percurso artístico.
Depois da sua morte (17 de junho de 1968) – um ano depois da de Eduardo Viana –, parte da imprensa portuguesa escreveu – erradamente – que ela foi uma “estrangeira vivendo em Portugal”, contudo, era portuguesa – e caldense.
Esta referência à obra de Mily Possoz e à sua visita à terra de registo natalício já é relevante isoladamente. Mais ainda se for contextualizada com outros nomes das artes e das ciências que passaram pelas Caldas. Talvez sirva para realizar uma memória singela no espaço público. Não bastam os nomes escolhidos para constarem na toponímia, alguns deles em zonas que não prestigiam a importância que tiveram para a cidade ou para a vida nacional com aproximações ou não às Caldas. O que importa é criar um percurso ou uma zona da cidade onde esses nomes estejam dignamente presentes e contextualizados. Fica como uma ideia para 2027.
Já o escrevi nestas páginas há dois anos. Justifica-se uma Comissão que inclua um presidente e vogais, à semelhança, por exemplo, da Comissão Nacional do Centenário do Turismo em Portugal, em 2011, a que tive a honra de presidir. A Comissão deve idealizar um Programa, desde a sua constituição até 6 de agosto de 2028, tendo como epílogo o Dia do Centenário (26 de agosto de 2027). O Programa seria criado por um conjunto de caldenses de diferentes gerações e idealizado pela Comissão, com relação direta com a Câmara Municipal, em que a baliza financeira seja o resultado de um consensualizado conjunto de iniciativas. Adianto uma linha possível para o Programa das Comemorações, com base em 7 pilares: Exposições, Artes Performativas, Encontros, Intervenção Urbana, Linha Editorial, Futuro. Estes eixos de atuação deveriam ser um produto coletivo, no debate que se abriria desde a fase utópica até ao consenso, com bom senso.
Jorge Mangorrinha
ONTEM COMO HOJE
“Um dever cívico“
Vão realizar-se as eleições administrativas. Dada a revivescência que se tem notado ultimamente nas fileiras republicanas, temos todas as razões para acreditar que as urnas serão desta vez bastante concorridas, sabendo-se como, também por seu lado, os adversários do regime se preparam para a luta eleitoral.
Sob o ponto de vista republicano e de defesa das instituições, há evidentemente por parte dos republicanos uma obrigação moral de não abandonar neste momento o ato eleitoral, para que a sua abstenção não possa ser explorada como demonstração de desaparecimento da fé republicana do país. Mas, independentemente desta razão, há, e acima de todas, a consideração do interesse publico. Naturalmente que, se os munícipes dos vários concelhos se desinteressarem da escolha dos indivíduos que hão-de tomar conta dos negócios administrativos dos municípios, a vida do país, o aspeto e embelezamento das povoações, a sua salubridade, o seu trânsito, a iluminação, – tudo isso se ressentirá do desinteresse que os que deviam ser mais interessados manifestarem. A cada passo se ouve fazer críticas à ação de tal ou tal câmara municipal, atribuindo-lhes má administração. E quantas vezes o que assim critica não [são] precisamente daqueles que se deixaram ficar em casa no dia do ato eleitoral!
O voto não é só um direito defendido como uma regalia pelas populações mais civilizadas: é também um dever. Pela impossibilidade prática de todos os cidadãos exercerem diretamente a administração pública, delegam noutros essa função. Devem por isso fazê-lo, medindo todas as consequências da sua escolha e tendo a preocupação de acertarem, tanto mais que, para exigirem desses que cumpram bem a sua função de mandatários, necessário se torna que eles cumpram bem a sua de eleitores, elegendo pessoas honestas e competentes.
Ainda que os monárquicos se abstivessem de travar a luta, ainda que estas eleições nenhum significado político pudessem ter sob o ponto de vista de mais uma vez provarem os sentimentos republicanos do país, ainda assim mesmo se impunha a todos os cidadãos, no pleno gozo dos seus direitos civis, a obrigação de acudirem às urnas, colaborando no ato eleitoral, pois dele depende em grande parte a boa ou má administração dos municípios.
Necessário é por isso que todos os cidadãos se compenetrem deste dever e que lho lembrem numa propaganda insistente os partidos políticos, por que o pior mal de um país é a indiferença ou a desconfiança pela boa ou má organização dos diferentes corpos dirigentes da nossa administração pública. Neste momento, em que é preciso conjugarem-se os esforços de todos os patriotas e entrar-se num caminho de definitivo ressurgimento do país, abandonar as eleições equivaleria não apenas a um crime, mas a um verdadeiro suicídio. Portugal, para viver, precisa primeiro afirmar a sua forte disposição para tomar conta dos seus destinos e mostrar o maior interesse em curar a sério da vida pública.”
(O Regionalista, 17 de outubro de 1922)
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