Escaparate
A sineta do portão fartou-se de tinir. A criada, uma dinamarquesa espadaúda, loira, de olhos muito azuis e ar de matrona, foi expedita a atender, porém, cansou-se de resmungar certas palavras que não ouso aqui referir.
Em poucos minutos eis que chega o convidado. Semblante carregado, não sei se devido ao bigode mal aparado ou ao cabelo em desalinho, o olhar ligeiramente confuso, e a respiração ofegante. Parece muito velho, contudo tem apenas 38 anos de idade. Convido-o a entrar. Sentamo-nos nas poltronas, junto à grande janela. Repentinamente, um corvo pousa no parapeito, o seu olhar é calmo, mitológico. Não foi à toa que fora consagrado a Apolo, Deus da Luz e do Sol.
Levanto-me. Coloco Creedence Clearwater Revival no toca-discos e vou buscar diversos livros de autoria do meu convidado. Os mais conhecidos são dedicados ao género gótico, encostados a um romantismo nebuloso e inquietador. Trago o que tenho, ou seja, tudo. Incluindo as sátiras, os embustes e os contos de humor. Espalho-os por sobre a mesa, estendendo-lhe uma caneta e o primeiro dos títulos – Metzengerstein – a sua estreia no género terror. Uma história publicada inicialmente na revista Philadelphia Saturday Courier, no dia 14 de janeiro de 1832, ocupando apenas seis páginas, e que chegou a possuir o subtítulo: Um conto em imitação do alemão.
Para o repasto, com alguma pompa e delicada sobriedade, convidei amigos de um concelho do Oeste, um burgo literariamente pobre e culturalmente debilitado, escorado em esperanças, em sonhadas metamorfoses, ofertadas por alguns poucos nomes que vão tentando acender medianas centelhas, almejando erguer-se no meio de tanta limitação. Não me parece uma terreola com futuro, pois a empáfia, ali, é irmã da ignorância.
Poe, conversador moderado, responde a todas as perguntas com educação e esmero, e como é um autor que detesta didatismo e alegorias, temos de ser o menos fabulários possível. Nada na sua literatura é axiomático. Tudo é arte.
Quando passámos ao licor, dedicou-nos verbalmente um pensamento acerca de como escreveu The Raven, o poema oferecido ao aliado de penas que, do peitoril da janela, observava atentamente os nossos movimentos. O nobre escritor descreveu-nos todas as passagens do famoso canto, anunciando que chegara a publicar (The Philosophy of Composition) uma observação acerca do seu método de criação.
“As pessoas entravam em conflito com o espírito da cena”, disse-nos num rompante. Aqui referia-se a si próprio, ao espanto que causara nos meios culturais onde perambulava, porquanto viam em si um crítico literário dos mais ferozes. Dava de ombros, pois a sua genialidade superava qualquer nariz torcido.
A literatura de Poe (1809-1849) demorou a chegar a Portugal. Quando o fenómeno ocorreu ganhou de imediato o agrado de Eça de Queirós (1845-1900), Antero de Quental (1842-1891) e Teófilo Braga (1843-1924), porém, a novidade ficou restrita aos círculos literários de Lisboa e Porto. Na região Oeste, em pleno século XXI, são ainda aos milhares os que desconhecem a sua obra.
De repente, levanto um brinde com um tinto oestino que dormitava há longos anos num local de sombra e tranquilidade. Poe, saboreando-o, exclama: “Tudo o que vemos ou parecemos, não passa de um sonho dentro de um sonho”.
Olhando-o com enormíssima admiração, só me vem à cabeça uma frase:
– Amanhã há praça, repleta de hortaliças e frutas, que se são um devaneio, são-no em doce conta, portanto, tratemos de recolher-nos ao leito, meus caros convivas, que o sono é um emancipador de almas.
Poe entreolha-nos e num esgar: “Dormir. Aquelas pequenas fatias da morte. Como as odeio”.
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