Entre 17 e 21 de Maio, entraram em Ceuta cerca de nove mil pessoas (diz-se que terão sido muitas mais), a maioria homens jovens, mas também pessoas mais velhas, famílias, mães e pais com bebés presos às costas; a maioria marroquinos, mas também algumas centenas com origem no Mali, Guine´-Conacri, Nigéria e Senegal. Vieram a nado, em bóias e a pé, aproveitando a baixa-mar e a repentina permissividade dos guardas fronteiriços marroquinos. Pelo menos uma pessoa morreu. Espanha deportou-os quase ao mesmo ritmo com que iam chegando.
Esta crise deveu-se a Espanha ter aceitado o internamento do chefe saaraui da Frente Polisario e da República Árabe Saaraui Democrática, Brahim Ghali, de 73 anos, num hospital de Logroño, a 22 de Abril, com pneumonia agravada pela covid-19. Ghali luta pela soberania do Sahara Ocidental, contra a ocupação de Marrocos. O governo marroquino reagiu com dureza e avisou Espanha para as consequências. Logo depois, uma multidão desesperada rumou a Ceuta e ao eldorado europeu.
O editorial do Le Monde, de 21 de Maio, chamava a atenção para o empobrecimento terrível da população marroquina, a deterioração dos direitos humanos em Marrocos e a maneira como o regime marroquino, para enfrentar as suas debilidades (sobretudo em política externa), não hesita em jogar com os próprios cidadãos.
A pressão migratória também tem sido a arma diplomática utilizada sempre que se negoceiam as cotas de pesca com a UE, em que Marrocos quer incluir o mar saaraui, e a UE recusa dizendo que esse mar não é sujeito a negociação porque tem um estatuto especial na ONU, por a questão saaraui não estar resolvida.
Desde há dez anos, o início da Primavera Árabe, que Marrocos se aproxima, nos planos político/diplomático e económico/comercial, da China, Rússia, EUA, Índia e Turquia. Este respaldo permite-lhe hoje fazer esta chantagem à UE. Se a UE retaliar com, por exemplo, a retirada do chamado estatuto avançado, que beneficia Marrocos com taxas aduaneiras preferenciais, Rabat terá alternativas como o tratado de livre comércio com os EUA ou toda a África como mercado livre.
A causa saaraui ter-se-á deteriorado, quando Donald Trump reconheceu a anexação (algo que a Administração Biden acabou recentemente por confirmar) em troca da normalização diplomática entre Marrocos e Israel. Marrocos pensou que outros países iriam também reconhecer a anexação. Mas os países europeus não só não seguiram os EUA como reafirmaram que o Sahara Ocidental, de acordo com o Direito Internacional e demais resoluções da ONU, é “um território na~o-autónomo pendente de descolonização”, e que a responsabilidade de encontrar uma solução política que cumpra o Direito Internacional e respeite o direito à autodeterminação do povo saaraui é das Nações Unidas.
A UE acordou com Marrocos uma política análoga à que estabeleceu com a Turquia há cinco anos: Ancara recebe generosos fundos em troca de servir de tampão aos milhões de refugiados no seu território e regiões vizinhas. Também Marrocos é um indispensável parceiro da Europa, e em especial de Espanha, no controlo dos fluxos migratórios e na luta antiterrorismo.
Este episódio de Ceuta confirmou que acordos deste tipo podem tornar-se uma perigosa arma de pressão política. Se os europeus contrariam os seus desígnios estratégicos, Marrocos “abrirá as comportas”. A mesma chantagem tem sido habilmente usada pela Turquia. Fica agora a expectativa de como reagirá o rei Mohammed VI quando eventualmente o Tribunal de Justiça da UE reafirmar que os tratados com Marrocos, relativamente a pescas e produtos agrícolas, não têm validade porque incluem o território e as águas territoriais saarauis.
Por que razão é tão importante para Marrocos o Sahara Ocidental? Quando se deu a independência de Marrocos em 1956, o Rei Hassan II ressuscitou a utopia do Grande Marrocos, que inclui o Sahara Ocidental, quase toda a Mauritânia e parte do território argelino. A anexação do Sahara Ocidental foi a concretização possível deste projecto imperialista.
Em 1976 dá-se um vazio político com a retirada de Espanha do Sahara Ocidental. Logo nesse ano, Hassan II promove a chamada marcha verde, que consistiu na ocupação por 350.000 marroquinos da parte Norte do território do Sahara Ocidental. O restante foi ocupado pela Mauritânia, que, em 1982, abdicou a favor de Marrocos, pelos custos inerentes à ocupação e administração.
O herdeiro de Hassan II, o actual rei Mohammed VI, quer ficar na História como o unificador de Marrocos — de Tânger a Lagouira. Considera esta fase consumada, pois na Constituição de 2011 o Sahara Ocidental é designado Província Sul. E estes acontecimentos de Ceuta serão um ensaio do que acontecerá, talvez no reinado do filho de Mohammed VI, Hassan III — a anexação de Ceuta e Melilha.
Mas há quem acredite na vitória da causa saaraui, tendo em conta que todos os documentos da ONU reconhecem que o Sahara Ocidental é um território não autónomo e que está à espera de um processo de descolonização, que terá de ser feito através de um referendo. Nem a ONU nem a União Africana voltarão atrás neste processo, pela História de África e das Nações Unidas no direito à autodeterminação dos povos, incluindo, claro está, o povo saaraui, a última colónia africana.
O povo saaraui tem demonstrado que quer ser independente, e este processo é exactamente igual, do ponto de vista do Direito Internacional, ao de Timor-Leste. Também se pensou que Timor-Leste não conseguiria a independência da Indonésia, um grande vizinho tal como Marrocos em relação ao Sahara Ocidental. O mesmo Direito Internacional, a mesma Justiça e o mesmo apoio de muitos países e organizações que assistiram ao povo timorense, assistirão ao povo saaraui.
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