O professor francês, selvaticamente assassinado, deixou claro que a escola, ao contrário do templo, não é lugar de dogmas e tabus, mas de debate, e promove valores essenciais à democracia. Deve um professor sobrepor esses valores basilares aos das famílias? Fez bem Samuel Paty sobrepor a liberdade de expressão aos valores religiosos de alguns pais? Sim, sem dúvida. A escola não se pode impedir de promover os valores da democracia, mesmo que possam afectar as convicções dos pais. Se o fizer, estará apenas a ser câmara de eco da família, e a escola só faz sentido se for além da esfera familiar.
Os pais projectam na escola vários mitos.
O mito da docência como sacerdócio — o professor deve anular-se em prol do “superior interesse do aluno”. Os que acalentam este delírio não suportam ver professores manifestar-se contra salários e condições de trabalho e de carreira aviltantes que os governos decretam. Não compreendem que os professores tenham vida além da escola e possam ter de faltar por doença, dos próprios ou de familiares.
Outro mito é o do professor ter de saber motivar os alunos. Novidade: a responsabilidade de motivar os alunos não cabe ao professor. A frequência do ensino é, antes de mais, do interesse do aluno. Esta questão, que é de autonomia, está a montante da escola e tem de ser debatida e resolvida em casa. Os alunos devem chegar à escola convictos das vantagens da frequência do sistema de ensino.
É claro que, nas aulas, há técnicas para captar a atenção, mas não é o professor que tem de motivar. Essa perspectiva vem de uma forma entorpecente de paternalismo, infantiliza o ensino e não é benéfica para ninguém. O saber exige esforço, vontade e disciplina do próprio. Se o aluno não se mobiliza interiormente, não há ilusionismo que valha.
Os truques, a que nas reuniões se chama “estratégias”, tipo Clube dos Poetas Mortos, de mandar subir para cima da mesa, ou fazer o pino, têm apenas eficácia momentânea. Outros truques, como o “apoio individualizado”, preconizados pela fantástica ideologia do “ensino centrado no aluno” não são sequer viáveis no ensino massificado. Para o professor da escola pública não há “o aluno”, há alunos, vinte, trinta a cada hora.
O dito filme não mostra que outros truques/estratégias, sensacionais e motivantes, o professor faria nas restantes aulas da sua carreira… Não. O aluno é que tem de saber o que quer. Dois ou três tempos semanais não chegam para ficar a conhecer os cento e tal alunos que o professor tem por ano lectivo, e permitir-lhe, em seu perfeito juízo, dizer a cada um «vai antes por ali, que é de certeza melhor para ti».
Outro mito é o da presença dos pais em reuniões de avaliação, no Conselho Pedagógico, no Conselho Geral, et cetera, ser vantajoso para a escola. Segunda novidade, e voltando ao início: a maior vantagem da escola é retirar aos pais o exclusivo da educação dos filhos e quebrar a cadeia hierárquica da ordem familiar. A escola ideal é aquela onde se interrompe a mesmice familiar, se dotam indivíduos da capacidade de discordar criticamente dos seus progenitores e se formam cidadãos. Só assim o mundo pula e avança. Alguém sabe quem eram os pais de Einstein ou de Picasso ou de Saramago?
O exigente funcionamento da escola de hoje debate-se com o excesso de intromissão dos pais no que se passa nas salas de aula. A ignorância boçal que grassa nas redes sociais, o desprezo pelo saber profissional e pelas hierarquias assentes no conhecimento, cujos efeitos vão desde a propagação de teorias conspirativas imbecis ate´ aos comportamentos anticientíficos, são trazidos pelos pais para dentro da escola.
A escola de hoje perdeu a autonomia em relação à instância familiar, e está constantemente a responder à fiscalização dos pais. Só haverá verdadeira escola quando a família passar a ficar em casa.
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