Foi um homem de trato impessoal e distante ao primeiro contacto, mas sempre reservado, muito metódico e disciplinado, um pouco misógino e avesso à boémia que caracterizava os seus pares. De resto, os seus companheiros surrealistas, como Max Ernst, Salvador Dalí, Eric Satie, René Magritte ou Paul Delvaux, não compreendiam como é que aquele pequeno-burguês se podia interessar pelo Surrealismo e pela pintura moderna. Mas foi contra a hostilidade dos pais e enfrentando a oposição de uma comunidade artística envelhecida, alcandorada nas suas torres de marfim académicas, que Miró, influenciado pelas reflexões de André Breton, ligou a pintura à poesia e elevou a sua arte ao nível do mito intemporal. A sua obra, cheia raiva e angústia (inicialmente marcada pela Guerra Civil Espanhola e pela II Guerra Mundial), mas também de sexualidade, humor e fantasia lúdica, é globalmente uma reacção à civilização e cultura ocidentais e ao efeito castrador e paralisante do senso comum, ao defender valores como os da liberdade e da irracionalidade, do sonho, da metáfora, do inverosímil e do insólito. Afasta-se das normas e convenções canónicas beauxartianas nos temas e nas técnicas, transgredindo-as sistematicamente, executando as suas obras à margem da razão, sem quaisquer moralismos e sem preocupações estéticas conscientes, numa espécie de automatismo psíquico. Esteticamente, as suas influências são ténues e restritas (vêm do Simbolismo, da chamada pintura metafísica de Chirico e de algumas obras de Picasso e Klee), tendo produzido uma obra de incomparável originalidade.
Em Portugal, as mentalidades dominantes continuam a ter dificuldade em ir além do Naturalismo, que consideram como o paradigma da arte pictórica, um Naturalismo sentimental e romântico que ganhou unanimidade oficial desde finais do século XIX até hoje. O Surrealismo, que surge primeiro em França por volta de 1919, decorrendo em parte do movimento Dada, só se organizaria como movimento em Portugal a partir de 1940, com António Pedro e António Dacosta. Já o Abstraccionismo, que surge com Kandinsky em 1910, só teria alguma relutante aceitação em Portugal cinquenta anos depois, com as obras de Amadeo, Santa-Rita e Almada.
Não admira, pois, que a possibilidade de o Estado português passar a ser detentor em 2015, na sequência da atribulada nacionalização do BPN, das 85 obras de Miró que tinham sido adquiridas por Oliveira e Costa em 2006, tenha indignado as tais mentalidades. Para quê?!, perguntavam banzados. No auge da jihad troikista, argumentou-se que seria melhor leiloá-las. O atavismo, a estreiteza de vistas e o baixo nível cultural sempre foram o traço identitário da nossa classe dominante. Entre os sucessivos ministérios da cultura da era democrática, quando os há, e os infames SPN e SNI do salazarismo, a diferença tem estado quase só nas siglas.
Felizmente, in extremis, a inteligência prevaleceu e os quadros foram salvos do martelo da Christie’s. Hoje, depois de concorrida e lucrativa exposição em Serralves, desde Setembro de 2016 até Junho passado, já ninguém contesta a importância ou a qualidade deste conjunto de obras que abarca um período de seis décadas da carreira de Joan Miró, de 1924 a 1981.
A exposição ficará em Lisboa, no Palácio da Ajuda, a partir de Setembro, por um período de pelo menos quatro meses, não se sabendo ainda para onde seguirá antes de regressar a Serralves. A intenção do Ministério da Cultura é que os portugueses de Norte a Sul possam ter um contacto directo com estas obras e as possam apreciar. Do Miró prescindível chegámos ao Miró itinerante. Nunca é tarde, afinal.
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