Poderá dizer-se que a peça teve três momentos distintos, embora coerentemente encadeados. Começou com a representação de parte do teatro de inverno, que, nas palavras do encenador Fernando Mora Ramos, “tudo mata e destrói”. Seguiu-se a mostra integral do Auto de São Martinho, onde o santo partilha a sua capa com um desafortunado.
No final, numa espécie de agradecimento divino pela ação do santo e pela humanidade da Rainha Dona Leonor (pois, como defendem os estudiosos de Gil Vicente, em Caldas da Rainha, a figura do santo, do século IV, é sobretudo uma metonímia de Leonor) surge um verão inusitado que se transforma em festa popular.
No segundo momento, enquanto Martinho, à época cavaleiro, separa com o fio da espada a sua capa para oferecer uma das partes ao pobre, repleto de chagas e de frio, afirma: “…Tua alma em glória será recebida com doces cantares dizendo assim: Laus et honor tibi sit rex Christe redemptor”.
Nesta altura, arrepiam-se as emoções, espantam-se os olhos do público e apontam-se os telemóveis, com versão de filmar ativa, para a fachada do Balneário Novo do Hospital Termal, pois, na varanda, surgem nove crianças, com idades compreendidas entre os seis e os nove anos, vestidas com túnicas brancas e coroadas com flores, a entoar, em latim, a canção religiosa, que é enunciada no auto de Gil Vicente, “Gloria, Laus et Honor”.
Esta música, um canto processual do Domingo de Ramos, é atribuída a uma das figuras centrais do Renascimento Carolíngio, Théodulf d’Orléans, um poeta, escritor e bispo, que viveu entre os anos 750 e 821, e contou, para o presente espetáculo, com a adaptação da diretora do Conservatório de Música de Caldas da Rainha, Maria João Veloso.
As crianças que a interpretaram foram Estela Calisto, Francisca Moura, Gabriel Tomás, Gonçalo Garcia, Lara Pinheiro, Margarida Vicente, Salomé Carvalho, Sofia Tavares e Vicente Correia (por ordem alfabética). Integram o coro infantil daquela instituição e foram dirigidas por Maria João Veloso e por Cláudio Duarte, tendo este último feito também o acompanhamento ao piano.
A participação do coro infantil no “Triunfo de São Martinho” insere-se na concretização da vontade, por parte do Teatro da Rainha, de envolver várias pessoas e instituições, da comunidade caldense, nesta grande produção. Mas, além disso, como mencionou o encenador: “Pretendeu-se, com a participação daquelas crianças, criar um momento comovente capaz de mostrar a força do ato generoso de São Martinho”.
Objetivo que, a avaliar pelas reações e comentários de quem assistiu, foi sobejamente alcançado. Pode ver-se, como exemplo desta afirmação, o que escreveu Margarida Araújo, fotógrafa do Teatro da Rainha, numa rede social, quando publicou imagens do ensaio geral do dia 11 de maio, referindo-se à prestação dos pequenos atores / cantores: “Quem ouviu não vai esquecer”.
Na parte final da encenação, quando se pretende celebrar a chegada do bom tempo, os pequenos saem da varanda e aparecem na praça, com passo apressado, arrastando graciosamente as suas sandálias de finas tiras, e começam a cantar uma música da tradição popular portuguesa, da recolha etno-musical de Michel Giacometti / Fernando Lopes Graça. Junta-se-lhe depois todo o elenco e, em conjunto, cantam e dançam como forma de mostrar o contentamento pela vida que se renova com o aparecimento do verão. As crianças, no entanto, como nos disse o encenador, “mantém-se na linha da frente”, pois, elas simbolizam não só o renascer, a renovação da vida, mas também o triunfo da bondade!
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