Rui Calisto concede-nos um romance de qualidade, com uma linguagem que nos prende ao passar das páginas e nos deixa em êxtase perante uma panóplia de acontecimentos. Uma escrita que além de cativante se torna verdadeira e transparente no que toca a ler as entrelinhas.
O autor consegue mimosear-nos e demonstrar-nos todo o tipo (e vasto leque) de emoções abordadas perante as situações centrais: Luanda, final do Império Colonial Português, guerra civil, armas, disparos, bombas, conflitos bélicos ocorrentes, escassez de alimentos, um pânico total, e nos meandros, uma bela moça angolana.
Conseguimos, com este livro, distinguir duas Luandas, a primeira: bela, calma, apaixonante; a segunda: triste, melancólica, com cheiro a morte e sobrevivência nula, a transpirar de vontade de se libertar.
É igualmente um livro viajante, retrata uma jornada longa e ampla. Uma travessia que teve começo num continente, manchado de azul (América do Sul), pousando num outro verdejante e inicialmente tranquilo, aromático e esbelto (Africano), tendo como final, um terceiro, mais negro e materialista, outrora citado como ‘’centro do mundo’’, não muito preocupado com as pequenas, simples e mais belas coisas da vida (Europa).
Temos uma personagem basilar bem curiosa, Ruizinho, de 9 anos de existência. Idade tenra que muito sabe e carrega. Autocaracteriza-se como ´´um educado reguila, um inquieto namorador de meninas e livros, de monumentos e paisagens.’’ Gosto, especialmente, da forma como o autor confisca a cabeça de uma criança e a amadurece, com as suas palavras e pensamentos, sem retirar a sua essência e a inocência própria dos petizes.
Apresento, da mesma forma, uma outra personagem muito significativa e interessante, o avô Manuel. Apesar de trabalhar com números e de ter conquistado um grande êxito no negócio cambista, Manuel, era muito culto, iluminado em numerosas áreas. Desta forma, transmite, fortemente, a Rui, não só o amor mas também a sua sabedoria. Notoriamente, seu herói, o avô, deixa saudades quando distante (ou prestes a partir, numa fase final do livro), e desperta felicidade e uma certa ansiedade momentos antes de se reverem, na chegada à capital angolana.
Luanda foi palco desta grande cumplicidade sentimental e intelectual de avô para neto e reciprocamente. Teve igualmente o prazer de observar o crescimento de um menino, apaixonado, com anelo de viver em pleno, enamorado por uma ‘’jovem morena, lábios carnudos como devem ser os lábios de uma elegante negrinha, olhar penetrante, braços magros, pele sedosa, seios rijos e apimentados, pernas longas e esbeltas e um andar de tirar o fôlego.’’ Tinha o nome de Ngeve e possuía uns amáveis e bem superiores dezassete anos. Esta é a história de amor vivida entre as palavras que constituem a obra, que possuirá muitos mais impropérios que a idade e o desinteresse romântico da jovem, que mais tarde, com o avançar dos confrontos bélicos, se alistará num movimento libertário.
Para concluir deixo o meu testemunho de como vale a pena a leitura deste volume, não só pelo momento histórico, o local e a ação, mas também pela qualidade da escrita e a ferocidade narrativa e literária.
Um livro com ritmo, com rigor histórico e acima de tudo, interessante.
Maria Brás
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