O “Grupo do Leão” surge numa conjuntura que lhe permite protagonizar um significativo momento de viragem no panorama artístico português. Emergia uma geração de pintores cheios de talento e de criatividade e também plenos de juventude e de frescor. Paralelamente, desaparecem os velhos românticos e a escola que acarinham manifesta-se desgastada e desajustada à era moderna, enquanto bolseiros portugueses se detêm em França – Paris e Barbizon – e daí chega a novidade de outros caminhos pictóricos mais vibráteis e arrojados. Neste contexto de convergência factual, onde ainda avultam as consideráveis transformações da mentalidade cultural que vêm ocorrendo, se afirma o “Grupo do Leão”, pujante de vitalidade e veiculando todo um articulado de conceitos de notável avanço para o caso nacional.
Corria o ano de 1880 e tivera lugar a penúltima exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes, à qual concorrem alguns dos artistas que viriam a integrar o agrupamento e que logo se manifestam insatisfeitos com o carácter já obsoleto desses salões. A Cervejaria Leão d’Ouro, na antiga Rua do Príncipe, hoje Rua 1º de Dezembro, em Lisboa, é o ponto de encontro, o cenáculo onde se reúnem artistas e literatos, convivendo e animadamente debatendo as ideias e as doutrinas que chegam de França, através de revistas sempre alvo de particular atenção ou dos pensionistas de regresso. Assim se verifica em torno de Silva Porto, o “divino mestre”, como jovialmente o distinguem com amizade e admiração, perante as almejadas novidades estéticas que personaliza; delas se impregnam e duma doutrina que profundamente os interessa, na predisposição que aspira à mudança e à ruptura com esquemas do passado. É o advento do Naturalismo introduzido pelo “Grupo de Leão” e traduzindo-se num verdadeiro movimento, fundamentado na teoria positivista que aponta a experiência directa como princípio e a imitação da natureza e do quotidiano como objecto da arte. Nesta perspectiva, o artista procura recriar a realidade, em função da ideia que concebe do seu conteúdo, e estabelecer as relações e dependências das partes, de modo a extrair os caracteres do todo; assim alcança as qualidades universais e permanentes para as fixar e valorizar.
O Naturalismo pictórico assume esta filosofia, por via duma vivência de ar livre, que colhe os motivos do natural e os transpõe para o suporte. Reformula-se o entendimento de todo o visível, numa atitude que visa a posse da verdade, pelo estudo coerente e firme da cor e da forma.
Os valores lumínicos encontram-se no cerne desta plástica; definem e motivam a pesquisa do “Grupo do Leão”, a sua compreensão da atmosfera e do sol, dos contrastes de sombra-luz, os cambiantes, os matizes e transparências que ressaltam e, porque não, o raro divisionismo permitido. A aliança da luminosidade e da cor é extraordinariamente coesa nos percursos que o naturalismo investiga e desbrava. com frequência, se revelam indissociáveis estes aspectos fundamentais da pintura, numa ambivalência que desvanece os limites da matéria e fazendo surgir a luz e os valores cromáticos como factores comuns do mesmo fenómeno, quantas vezes dum imenso lirismo.
A apreensão da forma vem a resultar destas conquistas, ora errante, ora sensual ou documental, mas quase sempre apaixonada e cruel, ao pretender apoderar-se do verismo imediato e do carácter concreto que transparece nas coisas e nos seres.
Nesta panorâmica cultural e estética se insere e se perfila o “Grupo do Leão”, inicialmente contando com Silva Porto, José Malhoa, António ramalho, João Vaz, Moura Girão, Henrique Pinto, Ribeiro Cristino, Rodrigues Vieira, Cipriano Martins e o entalhador Leandro de Sousa Braga (1839-1897), apoiados por Alberto de Oliveira (1861-1922), grande entusiasta do Grupo. Columbano, bolseiro em França, junta-se-lhes em 1883 e Rafael Bordalo Pinheiro em 1885.
A maior parte destes pintores encontra-se representada no Museu José Malhoa, num discurso em que se destacam as temáticas que a cada um mais atraiu e onde sobressai a sua expressão artística, seja a paisagem, o retrato ou a pintura animalista, seja a marinha, a natureza-morta ou as cenas de género. Sublinhe-se ainda a contextualização de Bordalo na cerâmica das Caldas, desafio que abraçou na época do “Grupo do Leão”.
António da Silva Porto (1850-1893) aparece como o chefe natural e incontestado do “Grupo do Leão”, em simultâneo com a actividade de professor da aula de Pintura de paisagem na Academia Real de Belas Artes de Lisboa, desde 1879. Assim duplamente exerce uma desejada influência e doutrinação estética, ora junto de condiscípulos, ora de alunos. Renovador da pintura de ar livre, colhe a essência dessa atitude numa profunda sensibilidade que interpreta a natureza nos aspectos fundamentais, a que não é alheio um íntimo lirismo, alicerçado em sólidos conhecimentos de desenho e de estudo do natural.
José Malhoa (1855-1933) mostra-se de central importância na cultura portuguesa, pelo entendimento que transmite do seu ofício de pintar, numa obra que percorre os aspectos da ruralidade do país, desde a paisagem à realidade dos costumes e das vivências do quotidiano. Assim recolhe o conteúdo autêntico dum panorama humano diversificado, a que não é estranha a compreensão da sua relação com o meio, a natureza envolvente, a paisagem que recria e humaniza. Dedica-se ainda ao retrato, quer de personagens populares, quer da burguesia citadina. Rigoroso e directo, não usa eufemismos com os modelos, exprimindo o que os seus olhos vêem e capta a sua subjectividade. Entretanto, o seu trabalho vai sendo atravessado por trechos de imensa frescura, de paisagem, de marinha, de recantos de jardins, transformando-os em momentos duma particular poética resultante da interpretação dos fenómenos lumínicos. Malhoa paisagista revelar-se-á ao longo da sua carreira de artista em duas vertentes distintas e complementares: a paisagem pura, despovoada, exercício de pintura pelo prazer de pintar; e a paisagem como suporte do humano, enquadramento natural e testemunha de costumes e vivências. É todo um imaginário comum que Malhoa aborda em arte de notáveis recursos técnicos e de uma atenta observação da atmosfera e luminosidade dos nossos dias, traduzindo-as com a justeza a que, por vezes, empresta a alacridade e a crueza de cor que as paisagens, as pessoas e as coisas efectivamente assumem.
António Ramalho (1859-1916) protagoniza também lugar de relevo no “Grupo do Leão”. Discípulo de Silva Porto na Academia Real de Belas Artes, e beneficiando de pensionato em Paris (1882-1884), revela-se sensível paisagista e detentor de notáveis recursos na pintura de retrato.
João Vaz (1859-1931) destaca-se pelos seus dotes de paisagista, mas, muito em especial, como marinhista. Discípulo de Tomaz da Anunciação (1818-1879) na Academia Real de Belas-Artes, e depois seguidor de Silva Porto, atinge nas suas principais obras uma compreensão completa e profunda dos valores lumínicos, atmosféricos e espaciais.
O mais velho do Grupo é José Moura Girão (1840-1916), cuja formação, na Academia Real de Belas Artes, recaiu num tempo ainda alheio ao anúncio do Naturalismo. No entanto, adere convicta e decididamente à novidade nascente, dela deixando impregnar-se a sua vasta produção artística. Encantado e incansável observador dos bichos de capoeira, foi um pintor muito apreciado pelo verismo e graciosidade que imprime às suas obras, com frequência cenas rurais, onde os temas animalistas assumem relevo.
Manuel Henrique Pinto (1853-1912) perfila-se como paisagista e pintor de género ao gosto naturalista. Cursa a Academia Real de Belas Artes e aí encontra como mestres Anunciação, Joaquim Prieto (1833-1907) e José simões de Almeida (1844-1926). Os aspectos da vivência rural constituem as linhas principais da expressão da sua pintura, apoiado pelo exercício do desenho de atenta observação, sensibilidade e rigor.
João Ribeiro Cristino (1858-1948), o mais moço dos artistas do “Grupo do Leão”, cursou a Academia Real de Belas Artes, assumindo a sua carreira artística acentuada importância como gravador. Todavia, a influência de Silva porto determina a estreia de Cristino como paisagista, que, desde a “Exposição de Quadros Modernos” de 1881, apresenta óleos, a par de provas de gravura em madeira.
João Rodrigues Vieira (1856-1898) é discípulo de Anunciação na Academia Real de Belas Artes; encontra os seus temas preferidos na paisagem e na natureza-morta, género em que é apreciada a frescura que imprime a frutos e flores.
José Joaquim Cipriano Martins (1841-1888), aluno de Miguel Ângelo Lupi (1826-1883) e de outros mestres, na Academia Real de Belas Artes; é um paisagista, mas sobretudo retratista de merecimento, que deixa obras dignas do Grupo e do movimento que integra.
o retrato é a expressão essencial da obra de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), que também se compraz na composição de naturezas-mortas e na pintura monumental, além de escassas paisagens de tonalidades discretas e húmidas. Uma segura técnica, que continuamente aperfeiçoa e desenvolve, não só através do óleo, mas ainda no desenho e nas subtilezas do pastel e da aguarela, suporta a coesa e determinada progressão da carreira de Columbano.
Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) revelou-se um espírito brilhante, ímpar de criatividade, que aplicou a uma contínua intervenção atenta e crítica à vida portuguesa. Permanecem de surpreendente actualidade os seus comentários à política, à economia, à sociedade da época, nas revistas de caricatura e humor que editou, atitude que não raro reflectiu na cerâmica que, a partir de 1884, logra revitalizar na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Expõe com o Grupo, enquanto as revistas que edita – “O António Maria” e os “Pontos nos ii” – inserem comentários caricaturais às obras dos companheiros. É, pois, na época do “Grupo do Leão” que Rafael Bordalo Pinheiro se fixa nas Caldas da Rainha e dá novo incremento de modernidade à cerâmica tradicional, aí criando também a galeria da “Paixão de Cristo” (1887-1899), obra única de cerca de sessenta figuras de estatuária de terracota à escala humana, distribuídas por nove cenas, recriação de extraordinária expressividade e valor plástico e iconográfico, que se pode apreciar em galeria própria, no Museu José Malhoa.
Entre 1881 e 1889, o “Grupo do Leão” realiza oito exposições, apoiado por Alberto de Oliveira, que também publica os catálogos. O primeiro destes certames anualmente organizados abre ao público a 15 de Dezembro de 1881, na Sociedade de Geografia, ainda na Rua do alecrim, denominando-se “Exposição de quadros Modernos”, designação que mantém até 1884. A partir de 1885, passa a intitular-se “Exposição d’Arte Moderna”.
Além desta arte moderna, duas outras inovações se apresentam: a venda directa das obras ao público, que se reveste de êxito total, e a edição do catálogo ilustrado com desenhos dos artistas, segundo a nova técnica de gravura em zinco usada em França, executada por Ribeiro Cristino.
Na imprensa, o acontecimento ganha relevo pela pena dos literatos e publicistas que frequentam o agrupamento. A Mariano Pina (1860-1899) fortuitamente se deve a designação que o consagrou. em artigo do “Diário da Manhã” do dia da inauguração salienta: “Chamar-lhe-ei ‘O Grupo do ‘leão’ a este grupo de artistas distinctos, rapazes ainda todos, cheios de entusiasmo e de talento, que resolveram ha um mez, entre boks e fumaças de cachimbo, organizar uma exposição de belas-artes, uma exposição essencialmente moderna, onde ha algumas télas preciosas, reveladoras de boas intelligencias.”.
Firma-se o Naturalismo em Portugal sob os desígnios de uma aurora de “arte moderna”. As doutrinas que o enformam são transpostas para o nosso solo e o nosso céu, adaptando-se à realidade paisagística e atmosférica. Cada artista persegue essa visão de renovo e de ineditismo, segundo a sua personalidade, a sua sensibilidade, a sua paleta.
proposta de “arte moderna” nos finais do séc. XIX português, que sofre as vicissitudes da dissidência apontada por alguns, mas que assume um rompimento com a situação estabelecida, a par de uma mensagem rica de novidade estética, também ela então considerada revolucionária.
Traçado o destino e o sentido da intervenção do “Grupo do Leão”, a sua poderosa, movimentada e inovadora passagem pela arte portuguesa, importa atentar em que não apenas pictoricamente se exprime o Naturalismo. Sentimento e experiência intelectual no seu tempo, reveste foros de movimento cultural, que largamente ecoa na filosofia, na literatura, na historiografia, na arqueologia, enfim, na forma de olhar a vida, numa conjuntura em que domina a procura científica e o positivismo.
É o “Grupo do Leão”, lugar de encontro informal de artistas e de homens de cultura, que vai estar na génese do “Grémio Artístico”, em 1890, o qual dará origem, em 1901, à já centenária Sociedade Nacional de Belas-Artes, de que Malhoa foi primeiro Presidente.
“Geração só comparável no domínio cultural, nas artes e nas letras, à da época dos Descobrimentos”, afirmaria Reinaldo dos Santos, e nunca será por demais acentuar que, no virar do século, são esses homens, com a sua criatividade e coragem, que se situam na charneira da nossa modernidade.
Interpretando a natureza segundo as suas convicções plásticas e sensibilidade, repudiam ora a idealização, ora a cópia, e abraçam uma atitude de recriação do real, numa prática de ar livre atenta aos valores efémeros da paisagem, da luz e da atmosfera. traduzem-na numa nova experiência que assume o quadro como espaço de liberdade para ensaios de cor e de luminosidades plasmadas na aplicação da pincelada, de franca novidade para o meio e, por isso, nem sempre compreendida. mas que vale a Almada Negreiros a opinião de que “com justiça se pode dizer que a cabeça estética portuguesa esteve aqui no Grupo do Leão”.
Este artigo foi publicado na revista LION, na edição junho/agosto de 2014.
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