A cultura humana não é exterior (nem anterior) à vida ou ao mundo dito “natural”. Interage com ele, num processo que o mineralogista russoVladimir Vernadsky viu como evolutivo. A diferentes escalas de tempo e de espaço, claro está. A noosfera, termo cunhado pelo incompreendido Teilhard de Chardin, sucederia à biosfera, assim como esta à geosfera. Karl Popper concebe na sua Teoria dos Três Mundos um Mundo 3 composto pela linguagem e pelos produtos da cultura humana. Mundo esse que, argumentou, não podia existir autonomamente, o que suscitou a crítica de Habermas. De facto três posições subsistem até hoje a este respeito: a dos que vêem, como Platão, o Mundo 3 como algo de sobre-humano e, por conseguinte, divino e eterno; a dos que negam a existência real do Mundo 3, a qual reduzem aos Mundos 1 (mundo dos objectos, dos estados e dos fenómenos físicos) e 2 (mundo das emoções e dos processos psíquicos); e a dos que, como Popper, viram o Mundo 3 simultaneamente como obra do homem e como algo que o transcendia. Sem entrar em complicações filosóficas que aqui não cabem, direi que boa parte do ambientalismo moderno ou rejeita o Mundo 3 ou pelo menos não o considera como parte integrante do conceito de sustentabilidade. A justificar aduz o facto de, em regra, as ideias e os produtos de cultura sobreviverem aos seus criadores. Direi apenas que discordo, pois a existência de tais “objectos” só é real na medida em que existem a cada geração homens que com eles sonham, com eles se relacionam, e que vivendo os pensam. Era esse o sentido que Natália Correia dava à sua expressão “A poesia é para comer!”; um sentido amplo de grandeza humana, não o de uma redução materialista da cultura a “coisa” necessária ou contingente. O património cultural da bela Nazaré (incluindo as expressões da “linguagem” que Armando Sales Macatrão tão bem identifica), o mar, a paisagem e a geologia são coisas inseparáveis em si mesmas, e necessariamente co-evolutivas. O pescado deu nome a homens que por sua vez deram nome a sítios e, na Nazaré, até mesmo às próprias pedras. E da madeira fizeram barcos, e das pedras pontões e edifícios que afectaram o mar e o relevo, vencendo e alterando correntes, permitindo ver de outros ângulos a natureza, e modificando a linha da costa. O respeito pelo ambiente, pelo promontório do Sítio e pelo mar em particular, incluindo os seus perigos e as suas riquezas, desenvolveu-se nas gentes da Nazaré muito antes de haver ciência, sob a forma de um olhar religioso que por todo a parte resplandece. Negar a ligação entre cultura e ambiente é negar aquilo que é, acima de tudo, evidente. E menosprezar o valor dessa ligação é, no mínimo, imprudente. A sustentabilidade não pode pois alhear-se da cultura, contrariamente àquilo que alguns “entendidos” actualmente sugerem. A Política sempre teve com a cultura uma relação complicada, em regra oscilando entre o paternalismo e a violência. O problema é que a cultura não dá votos – asseveram os modernos engenheiros da sondajocracia que habilmente desnorteiam a Política. A todos os níveis, e sobremaneira ao nível local, a coisa ganha por vezes contornos de acinte, com a ignorância mais selvagem a ser elevada à condição de virtude, dando subliminarmente a entender aos jovens que, se forem parvos, ainda podem ser dignos da “salvação” (assim fazendo jus à vicentina personagem). É à margem desta moderna tendência que se sucedem hoje em dia as mais diversas e louváveis iniciativas de cidadãos que, no pleno exercício da cidadania, se vão esfolando por repor alguma justiça, e por trazer à cidade a luz e o calor da Esperança. Uma dessas iniciativas foi a que teve lugar na Nazaré no dia 9 de Maio, a pretexto da preservação do Caminho Real da Pederneira, pela mão de Pedro Penteado, Rui Remígio e Paulo Fernandes. As primeiras Jornadas sobre Património Cultural e Desenvolvimento Sustentado visaram debater a ligação entre cultura e sustentabilidade, aproveitando para alertar os políticos e a comunidade local e regional para a importância de se preservar esse antigo vestígio de uma originalíssima identidade que marca a Nazaré, e particularmente a sobranceira localidade da Pederneira. Das jornadas saíram algumas conclusões a reter para a orientação de uma estratégia local de preservação e valorização do património cultural e de desenvolvimento sustentável. Em particular a relevância histórico-social e supra-local do Caminho Real (nomeadamente enquanto recurso único diferenciador e elemento de identidade); a necessidade de se aprofundarem os estudos relativos ao património cultural e natural da Nazaré (foi notada por exemplo a falta de uma Carta do Património Municipal); a urgência da protecção do Caminho Real (através da sua classificação, desejavelmente como património nacional) e a oportunidade de eventuais projectos de valorização, relativamente aos quais se destacou a importância do envolvimento dos cidadãos. Além do agradecimento público pelo amável convite que me fizeram para participar nas jornadas, gostaria de dar os parabéns aos promotores, aos intervenientes, ao Círculo Cultural Mar-Alto e à organização, fazendo votos de que o debate não esmoreça nem fique por aqui. Como tive ocasião de dizer, é para mim uma questão central na sustentabilidade a ideia de integração de políticas, cuja falha é por demais evidente nas mais diversas áreas, e que no caso vertente é denunciada pela fraca integração existente entre políticas culturais, do ambiente e de desenvolvimento sustentável. E que implica também a investigação científica, dada a crónica falta de conhecimento em Portugal sobre muitos bens a preservar, estando nesse caso na Nazaré não apenas o Caminho Real, mas também outras peças de reconhecido interesse patrimonial, como sucede com a Igreja de S. Gião. Valdemar Rodrigues
Cultura e sustentabilidade: o caso da Nazaré

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