Trabalhadores desanimados com futuro incerto da empresa “Se o fecho de uma unidade fabril é um grande trauma, com todas as suas consequências laborais, a morte anunciada das Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro é do ponto de vista simbólico bem mais grave, porque constitui um profundo golpe na identidade das Caldas da Rainha, assente na cerâmica”, afirma Fernando Rocha, activista da intervenção cívica. Uma das mais antigas e conceituadas indústrias cerâmicas do País está na iminência de fechar portas. Trata-se de uma das poucas fábricas de louça cerâmica ainda existentes e que é herdeira da unidade fabril criada em 1884 por Rafael Bordalo Pinheiro. A empresa ao longo dos anos manteve na sua produção o design e a colecção de Rafael Bordalo Pinheiro, autor de peças que ficaram para a História de Portugal, sendo a mais famosa o “Zé Povinho”. Se a unidade fabril precursora da sua obra fechar, deixa de ser feita uma infinidade de peças de faiança utilitária e decorativa, inspiradas na arte bordaliana. “O estatuto de ceramista foi, com a obra de Rafael, elevado a um plano nunca antes atingido em Portugal”, aponta o investigador João Serra. “Não só a faiança das Caldas deve a Bordalo Pinheiro o desbravar de caminhos. Também a arte portuguesa do barro colhe frutos da inspiração desse notável vulto da nossa cultura”, acrescenta Matilde Couto, directora do Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha. “Esta não é só uma empresa com uma componente comercial, mas uma instituição com o legado cultural que transporta”, indica Carlos Elias, com 22 anos de trabalho nas Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro. “É uma fábrica centenária e com nome, se fechar perdem-se os valores”, exclama Francisco Ferreira, funcionário há 18 anos. Para Sílvia Santos, funcionária há dez anos, “é triste ver uma empresa como esta encerrar”. Amílcar Louro, há sete anos na empresa, com a especialidade de forneiro, desabafa: “Esta fábrica tem muita tradição e mexe com a cidade. É o fim de um ciclo”. A administração pretende que os trabalhadores suspendam o trabalho, alegando falta de encomendas e liquidez financeira para pagar os salários, e prevê para 2009 apenas o funcionamento dos “serviços mínimos indispensáveis”. Dificuldades Com um mês de salário em atraso e sem perspectiva de viabilidade da empresa, o descrédito tomou conta dos trabalhadores. “Estou a perder a esperança”, confessa Sílvia Santos, lamentando a situação: “É muito complicado porque há aqui famílias inteiras a trabalhar”. “Não há dinheiro para a prestação da casa”, desabafa Francisco Ferreira. Perante a recusa dos trabalhadores em assinarem a “suspensão dos contratos enquanto não houvesse encomendas”, o administrador resolveu que “continuarão a marcar a sua presença na empresa”, mas alerta que “os trabalhadores assumirão a responsabilidade”. Jorge Serrano avisa: “Não podemos garantir que exista trabalho para executar nem tão pouco dinheiro para pagar os salários de Janeiro”. Os trabalhadores participaram numa vigília em frente à Câmara Municipal, numa acção de sensibilização dos governantes locais e nacionais para a necessidade da viabilização da empresa. Depois de uma reunião com presidente da Câmara, a comissão de trabalhadores ficou a saber que a autarquia pediu uma audiência ao Ministro da Economia, onde devem estar presentes todas as partes interessadas. O eurodeputado comunista Pedro Guerreiro apresentou uma “pergunta parlamentar” para ser respondida pela Comissão Europeia, procurando saber “que instrumentos podem ser disponibilizados para garantir a produção e os postos de trabalho”. Na Assembleia da República, o social-democrata Feliciano Duarte questiona, em requerimento, “que apoios tem o Governo projectado conceder”. “Globalização” A “globalização” é apontada como uma das principais causas da crise no sector cerâmico, com cerca de uma dezena de fábricas encerradas nos últimos anos nas Caldas da Rainha. A concorrência de outros países, nomeadamente asiáticos, com menores custos de produção, contribuiu para a menor procura da cerâmica portuguesa, dependente das exportações e menos competitiva no preço. A crise dos mercados financeiros agravou as consequências no tecido económico, levando os industriais da cerâmica a queixarem-se de “grandes dificuldades” na obtenção de crédito junto da banca. A situação nas Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro está envolta nesta conjuntura, a que não será alheia também alguma má gestão. A tendência negativa vem-se agravando desde 2005 e dois anos depois foi explicada aos 13 sócios da empresa – entre os quais se encontram, em situação minoritária, a “socialite” Cinha Jardim e o deputado Vera Jardim, por herança familiar – a necessidade de implementar uma reestruturação financeira como solução para fazer face a um negro período de falta de encomendas. Foi feito um estudo de viabilização, que apontou para a alienação de património para amortização do passivo, a redução de custos com pessoal e o aumento das vendas, que foi submetido ao IAPMEI – Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas, no âmbito de um processo extrajudicial de conciliação. “Verifica-se que foram satisfeitas todas as recomendações sugeridas, excepto a referente ao valor do volume de vendas considerado necessário, devido à insuficiência de encomendas”, afirma o administrador, Jorge Serrano. Herdeira do mestre As Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Lda. são a sequência da Fábrica de Caldas da Rainha fundada em 1884 pelo mestre. Bordalo não era um bom gestor e as receitas escassearam. A sua generosidade era outro problema. Quando Bordalo morreu, em 1905, a situação da fábrica, já sob a orientação do filho, Manuel Gustavo, era periclitante. Em 1908, a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha foi vendida em hasta pública. A actual empresa seria constituída em 1922 e tornou-se popular pela oferta de uma infinidade de peças de utilidade e decoração com o cunho de Bordalo, que actualmente mantêm o rigor e o design do artista. Ao longo dos anos foram desenvolvidas linhas que se ajustam de algum modo à sua tradição, que sempre a tem distinguido. A fábrica continua a recriar as figuras de movimento, azulejos, painéis de azulejo, jarrões, e serviços de louça. São produzidas peças de utilidade e decoração, nomeadamente, terrinas, pratos, travessas e outras, com as diferentes formas, desde couve, animais, frutos, mariscos e outros motivos ligados à Natureza. O vasto património acumulado da empresa inclui três lojas (uma delas no Porto), instalações fabris na zona histórica da cidade, que já vêm do tempo do artista, e na zona industrial, um museu e um restaurante. Tem actualmente 172 trabalhadores. Zé Povinho “O ‘Zé Povinho’ não é só uma marca das Caldas da Rainha, sendo talvez a nossa mais importante marca nacional, contendo todo o simbolismo da nossa identidade popular”, sublinha Fernando Rocha. Criado primeiro em papel e só depois passando do desenho para a imagem em barro, tem como característica principal o gesto do manguito. Tornou-se uma figura identificativa do povo, representando a sua faceta de revolta perante o abandono e esquecimento da classe política. Mas esta é apenas uma entre muitas e surpreendentes peças de Bordalo. Tal como Maria da Paciência. Esta alcoviteira é uma peça de movimento, que balança a cabeça e o corpo. “Este seu balancear, da esquerda para a direita ou vice-versa, é um gesto expresso de crítica pelo que vai vendo em seu redor”, dizem os especialistas. Há muitas peças com crítica de cariz político e social, como o penico e escarrador John Bull em reacção ao Ultimato britânico. É no entanto confundido Bordalo Pinheiro como sendo o autor das malandrices e objectos fálicos que também distinguem a cerâmica das Caldas da Rainha. Contudo, nem o mestre nem a sua Fábrica de Faianças produziram qualquer das referidas peças eróticas. Venda de património A Câmara Municipal das Caldas da Rainha comprou em Maio do ano passado parte das instalações da fábrica, bem como o património cerâmico (moldes e madres, desenhos e peças), para criar ateliês para ceramistas e um núcleo museológico. A aquisição foi feita por 900 mil euros, estando a última prestação de 200 mil euros dependente da realização da escritura. Centro comercial A Sonae Sierra tem um acordo com as Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro para utilização da figura do artista como tema central do centro comercial que tem projectado para a cidade das Caldas da Rainha, bem como o uso de materiais da fábrica na sua decoração, para além de condições especiais para a abertura de uma loja naquele empreendimento do grupo de Belmiro de Azevedo. Perfil Fundada em 1922 (fábrica original em 1884) 172 trabalhadores Duas unidades fabris nas Caldas da Rainha, com 14 fornos Duas lojas nas Caldas da Rainha e uma no Porto Vendas em 2007: 4.004.965 euros Vendas em 2008: 1.952.583 euros Previsão para 2009: 75.506 euros Francisco Gomes (texto)
Tradição de Bordalo Pinheiro em risco
21 de Janeiro, 2009
Trabalhadores desanimados com futuro incerto da empresa “Se o fecho de uma unidade fabril é um grande trauma, com todas as suas consequências laborais, a morte anunciada das Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro é do ponto de vista simbólico bem mais grave, porque constitui um profundo golpe na identidade das Caldas da Rainha, assente na cerâmica”, […]

Tradição de Bordalo Pinheiro em risco
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